A Folha de S.Paulo fez 100 anos. Não é época boa de fazer aniversário. Há a pandemia e há também um conjunto de crises e transformações em curso. Qual o papel de um jornal nesse momento? Minha visão é de que o papel da Folha hoje é a articulação de um conservadorismo de vanguarda.
Vale explicar. A vanguarda hoje foi capturada por forças políticas que estão no poder em vários países, incluindo o Brasil. As “inserções em circuitos ideológicos” que Cildo Meireles fazia nos anos 1970 parecem traque de festa junina quando comparadas ao aparato performático e ideológico que é movimentado todos os dias pela máquina de propaganda oficial.
Fale-se o que quiser dessa máquina, mas é preciso reconhecer que ela é espetacular. Inclusive no sentido situacionista da palavra.
Essa vanguarda apropriou-se com sucesso de todos os artefatos criados ao longo de décadas pelo campo chamado “progressista”: o conceito de hegemonia de Gramsci, o situacionismo propriamente dito, a própria internet, suas plataformas e até mesmo os games de realidade alternativa (ARGs) usados para criar o movimento “QAnon”. Mas a apropriação mais insidiosa de todas é também a mais inconspícua: a apropriação do conservadorismo.
Essa força política vanguardista disfarçou-se de conservadora para avançar. Assimilou símbolos religiosos e glorificou o passado e a nostalgia como arma de batalha. Só que não fez isso para conservar nada. Ser conservador é respeitar instituições e hierarquia. É reduzir o ritmo das transformações sociais para mitigar desagregação e niilismo.
A agenda dessa atual vanguarda política é o contrário de tudo isso. Sua arma é o coquetel que mistura violência, pornografia, religião e desinformação. Seu objetivo é promover dispersão, atomização e anarquia, para que o poder possa ser exercido pela força. Em suma, o oposto de conservadorismo.
E, sobre anarquia, a ideia pode até parecer sedutora para adultos que cresceram lendo a obra de Alan Moore, como “V” ou “Watchmen”, ou se empolgaram com o surgimento de movimentos como o Anonymous na rede. No entanto, é só olhar para uma cidade como o Rio de Janeiro –que se tornou um dos maiores experimentos de metrópole com real ausência governo em boa parte do seu território, substituído por milícias– para ver que ela simplesmente não funciona.
A anarquia no plano prático –descontada a utopia– é, na realidade, o caminho mais rápido para a lei do mais forte. A lei da selva, o Mad Max, o reverso do processo civilizatório. É esse lugar que a vanguarda da dispersão, disfarçada de conservadora, promove enquanto ideologia.
Dispersão de pessoas e de instituições, sujeitas a um único poder agregador, a força.
No seu aniversário de 100 anos esse é um caminho importante para a Folha: a defesa das instituições e da democracia, em contraposição ao niilismo, à anarquia e à desordem informacional na internet. No mundo de hoje a disputa política converteu-se essencialmente em uma disputa pela vanguarda. Hoje ela tem dono. Mas neste mundo da informação nada é permanente.
Tragam o bolo, soprem as velas e façam um pedido. Parabéns à Folha pelos 100 anos.
READER
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