Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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The New York Times Rússia

Por que não importa que Biden fale em genocídio na Guerra da Ucrânia

Abordagem internacional de crimes de guerra baseada na lei e orientada por processos sempre foi uma fantasia

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The New York Times

Há pouco mais de uma semana, Joe Biden agiu como Joe Biden e chamou a campanha russa na Ucrânia de "genocídio" –saltando à frente dos principais aliados dos Estados Unidos, do Departamento de Estado e dos fatos existentes.

O comentário provocou agitação em pessoas nervosas com a escalada americana e elogios de pessoas que a desejam (notadamente o presidente da Ucrânia). Em geral, estou do lado das pessoas nervosas: em um conflito com uma potência nuclear, sempre é interessante reduzir as apostas existenciais, e acusações de genocídio devem ser feitas apenas com evidências muito claras, assim como os pedidos de mudança de regime (o bidenismo anterior de Biden, que teve que ser desmentido) deveriam ser feitos, bem... Praticamente nunca.

O presidente dos EUA, Joe Biden, discursa em uma base militar em Oregon - Nathan Howard - 21.abr.22/afp

Diferentemente da conversa sobre mudança de regime, que o Kremlin leva a sério porque acredita que os Estados Unidos querem planejar uma "revolução colorida" em Moscou, a acusação de genocídio pode parecer aos ouvidos de Vladimir Putin muito mais um floreio do que uma ameaça. Afinal, nada na história recente sugere que o termo seja usado pelas potências ocidentais com real consistência ou certeza ou de uma forma que provoque uma resposta americana coerente.

Não é por falta de discussão e esforço. A experiência da década de 1990, quando os Estados Unidos se afastaram do massacre dos tutsis em Ruanda e, mais tarde, intervieram do ar para impedir a limpeza étnica na antiga Iugoslávia, parecia fornecer modelos de como a "pax americana" ou a "ordem internacional baseada em regras" deve funcionar. Quando houve ameaça de genocídio, havia a responsabilidade de proteger a população ameaçada. Quando se decidiu que o genocídio havia ocorrido, havia a responsabilidade de colocar as partes responsáveis perante um tribunal internacional.

Mas a realidade não cedeu a essa estrutura ideal. Em vez disso, temos casos, como no Iraque e na Líbia, em que os ditadores foram punidos por atrocidades passadas ou ameaçadas, mas enfrentaram uma justiça dura, não em Haia, e as intervenções militares lideradas pelos americanos que os derrubaram foram amplamente vistas como imprudentes ou desastrosas.

Temos casos, como na região de Darfur, no Sudão, e agora com os rohingyas em Mianmar, em que o rótulo de genocídio foi afixado, mas não houve resposta militar americana. Temos um caso como a Segunda Guerra do Congo, onde assassinatos em massa e atrocidades continuaram durante anos sem uma determinação de genocídio –ou, de fato, sem que recebesse muita atenção ocidental.

E então temos o caso recente da opressão da China à sua minoria uigur, que o Departamento de Estado declarou ser um genocídio no início de 2021 —declaração que não levou exatamente a sérias consequências internacionais para o regime de Pequim.

Este último exemplo é especialmente relevante para a invasão da Ucrânia pela Rússia, no sentido de que responde a uma questão levantada pelo comentário de Biden sobre genocídio.

Se uma potência com armas nucleares cometer crimes contra a humanidade em território controlado por ela, os Estados Unidos irão à guerra para impedi-los? Pergunte aos uigures. Ou, aliás, aos tchetchenos, que certamente sofreram tanto com a crueldade russa quanto os ucranianos, sem que ninguém sugerisse que poderíamos nos arriscar a uma guerra nuclear por causa deles.

Mas essa observação fria não é um conselho de desespero. A ideia de uma abordagem internacional do genocídio ou de qualquer crime de guerra baseada na lei e orientada por processos sempre foi uma fantasia. Mas um cálculo mais realista ainda deixa espaço para se fazer o possível para que os assassinos em massa paguem um preço. Você só precisa adaptar sua abordagem e aceitar que não está estabelecendo uma regra universal.

Tanto o genocídio ruandês quanto o bósnio terminaram com os genocidas sofrendo uma derrota militar devastadora –mas nas mãos dos exércitos rebeldes ruandeses e croatas, respectivamente, não das tropas terrestres dos Estados Unidos ou da ONU. O fim das depredações do Estado Islâmico, entretanto, aconteceu com o apoio militar dos EUA, mas com o exército iraquiano como ator-chave em campo.

Isso sugere que onde há um ator militar local plausível para liderar o esforço o apoio internacional pode inclinar a balança contra os criminosos de guerra. Onde não há, às vezes podemos ter um jogo mais demorado: anos após o genocídio em Darfur, o ditador sudanês Omar al-Bashir poderá finalmente enfrentar um tribunal internacional depois de ser derrubado em um golpe.

Mas, às vezes, tudo o que se pode fazer é testemunhar. Não iríamos invadir a União Soviética para vingar o Holodomor ou colocar Mao Tse-tung em julgamento pelo Grande Salto Adiante e também não devemos esperar ver Xi Jinping no banco dos réus.

A situação na Ucrânia é um caso distinto. É muito improvável que Putin caia do poder; seria insano tentarmos forçar uma mudança de regime. Ao mesmo tempo, há um exército em campo que se mostrou capaz de enfrentá-lo, com apoio internacional, mas sem intervenção direta dos EUA. E essa boa notícia, por mais provisória que seja, parece ser o que nosso presidente deveria enfatizar —a situação real, não a escalada hipotética.

Putin está cometendo genocídio? Ainda não, pessoal, e agora, com o nosso apoio, os ucranianos estão garantindo que ele não tenha essa oportunidade.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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