Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

Fim de decisão que garantiu direito ao aborto nos EUA estava contido em seu início

Com Roe vs. Wade, Suprema Corte contribuiu para a polarização e a deslegitimação das instituições americanas

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The New York Times

​Em certo sentido, a indignação dos progressistas diante da perspectiva de a Suprema Corte derrubar Roe vs. Wade não parece condizer com a atual narrativa-mestre segundo a qual esse grupo está defendendo a democracia contra a ameaça do autoritarismo e lutando pelo princípio do governo da maioria contra um Partido Republicano que se beneficia de poder contramajoritário.

Afinal, derrubar Roe devolveria a questão do direito ao aborto ao processo democrático, após duas gerações durante as quais a política sobre a questão foi definida por uma juristocracia, um voto apenas das elites definido por 7-2 votos ou 5-4.

Mas as narrativas são adaptáveis. "Em rascunho de decisão sobre o aborto, democratas enxergam uma Suprema Corte em desacordo com a democracia", dizia uma chamada recente do Washington Post.

O título encabeçava uma reportagem que resume alguns dos argumentos —pesquisas de opinião revelando apoio público a Roe, o fato de três dos juízes da Suprema Corte terem sido nomeados por um presidente eleito com minoria do voto popular— aventados para provar que deixar que os estados ou o Congresso legislem sobre o aborto é na realidade uma atitude autoritária, não democrática.

Manifestantes favoráveis ao direito ao aborto fazem vigília em frente à casa do juiz da Suprema Corte Samuel Alito, em Alexandria, na Virginia
Manifestantes favoráveis ao direito ao aborto fazem vigília em frente à casa do juiz da Suprema Corte Samuel Alito, em Alexandria, na Virginia - Evelyn Hockstein - 9.mai.22/Reuters

Não quero discutir com essas interpretações tanto quanto tomar nota delas e ao mesmo tempo propor uma visão diferente do lugar ocupado pelo aborto entre as insatisfações da república americana.

Compartilho algumas das ansiedades que subsidiam a narrativa-mestre progressista de hoje —sobre um país polarizado demais para funcionar corretamente, uma direita populista submersa na paranoia, uma decadência das normas que possibilitam o funcionamento do governo republicano. Mas, se me propusesse a escrever uma história sobre exatamente como chegamos aonde estamos, eu situaria a decisão inicial de Roe perto do centro da narrativa; um ponto de inflexão no qual as escolhas do progressismo de elite ativamente empurraram a República na direção de nossas divisões atuais.

Quando, em 1973, sete juízes da Suprema Corte derrubaram as leis do aborto do país, eles estavam intervindo em um debate cujo fundamento político era instável e complexo. Tanto o sentimento pró quanto o contra essa garantia estavam presentes nos dois partidos e nas duas ideologias: havia progressistas antiaborto, muitos dos quais democratas católicos, e defensores republicanos e de direita do direto ao aborto, que o enxergavam como possível arrimo da estabilidade social.

É provável que a discussão ao fim ganhasse contornos nacionais e se polarizasse, fosse como fosse. Mas a Suprema Corte nacionalizou essa política de maneira muito específica, tirando a maior parte da regulamentação do âmbito do debate legislativo e vinculando-a ao próprio tribunal e à Presidência.

Daquele momento em diante, em lugar de ser debatido e disputado nas instituições designadas para canalizar a opinião de massa e a mobilização ativista para acordos estáveis —quer fossem as legislaturas estaduais ou o Congresso—, o aborto seria vinculado aos resultados "tudo ou nada" das eleições presidenciais e das brigas por nomeações de juízes da Suprema Corte.

O resultado já previsível foi uma política cada vez mais maniqueísta: ou você era a favor da decisão original ou contra —nenhum acordo de meio-termo podia ser negociado, experimentos políticos locais não podiam ser conduzidos. E a cada poucos anos a questão era destilada em um referendo sobre candidatos presidenciais e nomeados à Suprema Corte, a distinção entre amigo e inimigo em sua forma mais pura.

Com o passar do tempo, o estilo apocalíptico que isso encorajou nos dois grandes partidos americanos se ampliaria para abranger outras questões, tanto que o papel do aborto foi parcialmente obscurecido.

Mas, quer fossem feministas se posicionando a favor de um presidente predador sexual na década de 1990 ou conservadores religiosos abandonando todas as ideias sobre caráter, decência e piedade para apoiar Donald Trump em 2016, quando a polarização corrompeu os princípios, a discussão sobre Roe geralmente esteve à raiz do problema.

Mas a natureza da polarização também tinha importância. Um debate em âmbito nacional fraturou os EUA segundo duas linhas especialmente perigosas: classe e religião. Embora os progressistas frequentemente insistam que defendem os direitos de aborto em prol dos marginalizados, a realidade é que os mais pobres e menos instruídos são mais propensos a ser contra a liberação, enquanto ricos e altamente escolarizados tendem a ser mais favoráveis à garantia.

Do mesmo modo, embora os antiaborto enfatizem argumentos seculares, a realidade é que as crenças cristãs são um dos melhores indicadores desse sentimento.

Assim, a separação que define nossa política hoje —uma direita de classe trabalhadora, rural e religiosa e um progressismo da cidade, secular e da classe gerencial— foi acelerada pelas divisões em torno de Roe.

E a maneira pela qual a decisão se deu agravou essa polarização. Da perspectiva geográfica e de classe, um grupo de togados em Washington exigindo que o país simplesmente aceite sua visão sobre uma das questões morais mais graves que se pode imaginar é o detonador perfeito de uma revolta populista.

Algo que ocorreu de maneiras semelhantes com outras questões —mais notadamente a imigração— aconteceu com o aborto primeiro: o acordo definido pela elite não resolveu a questão, e a reação contra ela atingiu não apenas a questão em si, mas também a própria legitimidade da elite.

Enquanto isso, da perspectiva da religião, ao constitucionalizar a questão, Roe não se limitou a impor uma derrota política normal ao campo antiaborto —a decisão pareceu totalmente excluir essas convicções fundamentais da ordem constitucional americana, algo que plantou as sementes de uma alienação religiosa que continua a dar frutos amargos até hoje.

E o timing foi especialmente infeliz: quando Roe vs. Wade foi anunciada, católicos e evangélicos haviam acabado de passar por períodos de reforma e modernização que prometiam uma reconciliação entre a fé cristã e a modernidade liberal. E então a modernidade liberal mudou suas exigências e as tornou "tudo ou nada", fazendo o preço moral do reconhecimento da decisão ser mais alto do que muitos cristãos conseguiriam pagar.

Finalmente, e de forma crucial para a deturpação do próprio progressismo, o preço exigido não foi apenas moral, mas também intelectual —porque Roe não foi uma decisão constitucional persuasiva, mas o mais claro possível estudo de caso de como fica quando juízes da Suprema Corte legislam.

Nada na história que acabo de contar significa que derrubar Roe agora vá necessariamente melhorar o progressismo ou o conservadorismo, revigorar a democracia ou reduzir a polarização. Partimos de onde estamos, e o lugar aonde fomos acabar não inspira confiança no que pode estar por vir.

Mas, se Roe de fato cair, faz sentido que uma decisão que tanto contribuiu para dividir nossos partidos e deslegitimar nossas instituições acabe finalmente sendo desfeita pelas próprias forças que desencadeou. Seu fim estava contido em seu início.

Tradução de Clara Allain

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