Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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O que 'O Homem do Norte' e 'Top Gun: Maverick' significam para o cinema

Ambos funcionam muito bem, surpreendem e divertem, mostrando que os filmes como os conhecíamos ainda podem renascer

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O declínio pode ser revertido? A decadência pode ser evitada? Essas perguntas pairam sobre os Estados Unidos de Joe Biden, terra de US$ 5 por galão de gasolina (R$ 6,80 por litro), recessão iminente, falhas na rede elétrica à vista, crise urbana ao estilo da década de 1970 —sem falar numa lista de filmes de verão liderada pela enésima sequência de "Jurassic Park" e "Lightyear", patético filme feito pela Disney para faturar, baseado na cultura pop fictícia de um filme da Pixar de 1995.

Mas pela primeira vez venho para elogiar a Hollywood contemporânea, não para enterrá-la. Já faz quase três meses que uma temporada desanimadora do Oscar pareceu destilar o colapso do Cinema, com C maiúsculo, como a forma de arte americana essencial. E nesse período, por mais deprimente que tenha sido para a sociedade americana em quase todos os aspectos, fomos agraciados com dois vislumbres do cinema como era antes, e poderá ser novamente um dia —duas visões do renascimento cultural pop para a nossa era de ouro, ferrugem e imagens de computador.

Os dois filmes são de certa forma muito diferentes. Um é a visão de um autor, alienante e desafiadora, implacável, diferente e estranha. O outro parece, a distância, a versão da decadência dos sucessos de bilheteria, saqueando uma das últimas propriedades não saqueadas da geração pós-Segunda Guerra.

Tom Cruise em cena do filme 'Top Gun: Maverick',
Tom Cruise em cena do filme 'Top Gun: Maverick', - Paramount Pictures/Divulgaçao

Entretanto, na verdade eles são espiritual e artisticamente semelhantes: dois dramas sobre masculinidade e heroísmo, com visões de mundo morais e metafísicas poderosas —e diferentes. E cada um é um espetáculo técnico, uma imersão visual e auditiva, que justifica a grande tela e a experiência de ir ao cinema comunitário, desprezando seu sucessor privativo e reduzido.

Os filmes são "O Homem do Norte" e "Top Gun: Maverick". O primeiro é obra de Robert Eggers, cineasta dedicado a retratar o passado como as pessoas do passado poderiam ter imaginado. Neste caso, ele tentou fazer o tipo de filme de vikings que um viking de verdade poderia ter feito.

Assim, Odin e as Valquírias são reais, a morte em batalha é a maior glória, e a vingança sangrenta é perseguida sem remorso. Você pode ver perspectivas alternativas –cristãs, liberais, feministas– piscando no fundo, mas o filme se recusa a ceder a elas, recusa-se a piscar abertamente para as sensibilidades modernas. É uma fusão dos espíritos dos grandes sucessos com filmes de arte que supera a maioria dos exemplos de ambos: o mundo imaginário é mais imersivo que os universos da Marvel ou da DC, e a visão de mundo é mais desafiadora e inquietante que a maioria das artes "subversivas" ou "radicais".

O novo "Top Gun" é menos desafiador e agrada mais ao público, fato que se reflete em sua bilheteria muito mais gorda, seu apelo demográfico mais amplo. ("O Homem do Norte" é apenas um filme para namorar se você pretende engravidar sua namorada e depois abandoná-la para que ela crie seus filhos sozinha enquanto você parte para matar todos os inimigos que poderiam ameaçá-los algum dia.)

Mas a sequência do piloto de caça de Tom Cruise subverte as convenções atuais de Hollywood de maneira diferente. Em vez de pegar um clássico moderno e "reiniciá-lo" como um péssimo espetáculo reluzente –como as sequências de "Guerra nas Estrelas" ou os live-actions da Disney que aproveitam sua biblioteca de animação–, ele pega um sucesso mais mediano e o eleva, com melhores sequências de ação, uma história mais enxuta, mais coisas acontecendo sob a superfície do espetáculo.

Como "O Homem do Norte" e ao contrário de toda a interminável cultura pop oferecida às sensibilidades de 14 anos, "Top Gun: Maverick" é fundamentalmente uma história sobre a morte e o que constitui uma boa morte. Embora ambos sejam filmes de guerra, suas respostas são tão diferentes quanto o paganismo viking e o cristianismo. O épico viking insiste na primazia da inimizade e da glória, suavizadas apenas pelas lealdades do sangue e do sexo reprodutivo.

O blockbuster do aviador, no qual o inimigo não identificado existe principalmente como um teste para os heróis, oferece um romance casto, relacionamentos paternos e filiais adotivos e uma mensagem do Novo Testamento: ninguém tem maior amor do que este homem que dá a vida por seus amigos.

E o oferece –este é um spoiler interpretativo, sem pedido de desculpas, o filme foi lançado há semanas– em um esquema sutil, mas, depois que você o percebe, inconfundivelmente sobrenatural. O Maverick de Cruise não está realmente liderando sua última missão no mundo real: ele morre no primeiro ato do filme e está treinando pilotos numa espécie de purgatório, trabalhando com os erros de sua vida para descobrir sua própria salvação, para alcançar uma versão cristã do Valhala.

Isso não descarta uma interpretação mais secular e política da história, em que "Top Gun: Maverick" é sobre o poder americano equilibrado entre nostalgia, declínio e possível renascimento. De fato, na medida em que os EUA são uma sociedade antes cristã, mas incerta sobre seu futuro religioso, as duas interpretações se complementam. E na medida em que uma espécie de renascimento pagão oferece um potencial futuro pós-cristão para a sociedade americana, o contraste moral-teológico entre "Top Gun" e "O Homem do Norte" torna muito mais notável seu sucesso estético em comum.

Mas agora eu os sobrecarreguei com bagagem, quando deveria ser suficiente dizer que ambos funcionam muito bem, surpreendem e divertem –e de bens tão simples e realizações básicas os filmes como os conhecíamos ainda podem renascer.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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