Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Ross Douthat
Descrição de chapéu aborto

Triunfo improvável do movimento antiaborto traz um futuro político incerto

Estados conservadores bem governados podem modelar novas abordagens à política familiar

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De acordo com qualquer teoria razoável da ciência política, qualquer suposição normal sobre como funciona o poder em nossa República, este dia não deveria ter acontecido.

O movimento antiaborto passou meio século tentando derrubar uma decisão da Suprema Corte que supostamente refletia o consenso esclarecido da era moderna. Esse movimento trabalhou contra a tendência geral da população, que popularizou a própria "Roe vs. Wade", mesmo que o país continuasse em conflito sobre a questão subjacente; contra o consenso quase universal da mídia, da classe acadêmica e de especialistas; contra os desejos de políticos que nominalmente apoiavam a causa, contra as preferências de parcelas substanciais da classe de doadores do conservadorismo americano.

Ao longo de todos esses anos, a causa antiaborto também nadou contra as correntes sociológicas e religiosas da vida americana, que favoreciam o progressismo social e a secularização. Encontrou pouco apoio declarado entre os produtores culturais e os cruzados pela justiça social de Hollywood, ou as entidades corporativas que recentemente abraçaram tantas causas progressistas. Foi prejudicada pela ocultação da injustiça a que se opunha, a falta de voz do eleitorado em nome de quem tentou falar.

Ativistas contrários ao aborto celebram em frente à Suprema Corte, em Washington, a decisão de suspender o direito ao procedimento no país
Ativistas contrários ao aborto celebram em frente à Suprema Corte, em Washington, a decisão de suspender o direito ao procedimento no país - Elizabeth Frantz - 25.jun.22/Reuters

E funcionou contra o peso da hierarquia de classes americana, já que o sentimento antiaborto é mais forte entre os americanos menos instruídos e de baixa renda —exatamente o eleitorado errado para começar, segundo cínicos e realistas igualmente, se você pretende pressionar a elite ou mudar o mundo.

Além disso, o movimento antiaborto teve que ter sucesso duas vezes. É inteiramente verdade que a decisão da Suprema Corte é obra de uma supermaioria praticamente acidental, criada pela interação casual entre a mortalidade dos juízes e a vitória improvável de Donald Trump.

Mas também é verdade que o lado antiaborto já construiu uma aparente maioria no tribunal superior da maneira padrão, na era Reagan, apoiando presidentes republicanos que conquistaram grandes maiorias populares e nomearam uma série de juízes cuja filosofia era supostamente oposta às políticas progressistas da corte presidida por Earl Warren. Quando três desses juízes –Anthony Kennedy, David Souter e Sandra Day O'Connor— votaram pela manutenção de Roe no caso Planned Parenthood vs. Casey, em 1992, sua decisão claramente pretendia ser um acordo permanente, um apelo para acabar com "uma controvérsia nacional" com "uma ordem comum enraizada na Constituição". O movimento antiaborto foi uma causa sempre marginal e conturbada, e naquele momento parecia derrotado.

No entanto, 30 anos depois, aqui estamos. E, apesar de toda a contingência envolvida, futuros estudiosos dos movimentos de massa encontrarão na causa antiaborto um exemplo notável de ativismo sustentado contra probabilidades substanciais, de mobilização popular desafiando o consenso da elite –de "virtudes democráticas", para emprestar o termo do cientista político Jon Shields, que seriam mais amplamente estudadas se não tivessem sido exercidas em uma causa contrária aos progressistas e à esquerda.

Mas a história não termina aqui. Embora o movimento antiaborto tenha conquistado o direito de legislar contra o aborto, ainda não provou que pode fazê-lo de forma capaz a obter o apoio duradouro da maioria.

Suas fraquezas não desaparecerão na vitória. Seus inimigos foram radicalizados por seu sucesso judicial. E as vicissitudes da política e seus compromissos ligaram a causa antiaborto a forças tóxicas da direita —algumas libertinas e hiperindividualistas, outras hostis à síntese, conciliação e política majoritária.

O movimento antiaborto está inevitavelmente ligado a algum tipo de conservadorismo, na medida em que é difícil separar uma ética antiaborto de uma conservadora em torno de sexo, monogamia e casamento. Mas entre seus próprios autores e ativistas o movimento entendeu que também carregava o melhor da tradição americana de reforma social, incluindo causas associadas ao liberalismo e ao progressismo.

Ao mesmo tempo, os muitos críticos do movimento antiaborto o consideram não apenas conservador, mas uma encarnação da reação no seu pior sentido –punitivo, cruel e patriarcal, sobrecarregando as mulheres pobres e não fazendo nada para aliviá-las, colocando a vida do feto à frente da vida e da saúde das mulheres, ao mesmo tempo em que finge considerá-las iguais.

Para vencer a batalha a longo prazo, para persuadir o vasto e inquieto meio do país, os oponentes do aborto precisam de modelos que provem que essa crítica está errada. Eles precisam mostrar como as restrições ao aborto são compatíveis com os bens que os defensores do aborto os acusam de comprometer –a saúde das mulheres mais pobres, o florescimento de seus filhos, a dignidade da maternidade mesmo quando inesperada ou em meio a grandes dificuldades.

Esses problemas podem ser secundários em comparação com a questão de vida ou morte do aborto em si, mas são essenciais para os aspectos holísticos do debate político e ideológico. Em qualquer grande controvérsia, as pessoas são influenciadas para um lado ou para outro não apenas pela correção de uma determinada posição, mas pelo fato de essa posição estar inserida em uma visão social que parece de modo geral atraente, desejável, à qual vale a pena se aliar e por ela lutar.

Algumas das patologias da governança de direita podem abrir caminho ao fracasso do movimento antiaborto. Você pode imaginar um futuro em que as leis antiaborto estejam sempre ligadas a uma política punitiva e mesquinha, em que as mulheres em dificuldades possam enfrentar o escrutínio policial por um aborto suspeito, mas recebam pouco em termos de orientação pré-natal ou apoio pós-natal.

Nesse mundo, sérias restrições ao aborto seriam sustentáveis nas partes mais conservadoras do país, mas provavelmente em nenhum outro lugar, e as perspectivas de longo prazo para a legislação nacional de direitos ao aborto seriam brilhantes. Mas há outros futuros possíveis. O impulso antiaborto poderia controlar e melhorar a governança conservadora, em vez de ser prejudicado por ela, tornando o Partido Republicano mais sério sobre política familiar e saúde pública. Estados conservadores bem governados como Utah poderiam modelar novas abordagens para a política familiar; estados no extremo sul poderiam ser incitados a uma política mais generosa por ativistas antiaborto; grandes estados republicanos, como o Texas, poderiam continuar sendo ímãs para a migração interna, mesmo com leis restritivas ao aborto.

​E não é apenas o movimento antiaborto que pode alienar o meio conflituoso no mundo pós-Roe. O lado pró-aborto está hoje em risco de abandonar seus movimentos retóricos testados pelo tempo em nome da correção política progressista e se recusando a comprometer suas demandas políticas maximalistas.

Além disso, certos redutos do progressismo contemporâneo têm um espírito mais sombrio do que a atmosfera jovem do progressismo dos anos 1960, em que o movimento pró-aborto obteve tantas vitórias.

Se Alabama e Mississippi não são as melhores propagandas para a visão antiaborto, Seattle e San Francisco também não são propagandas necessariamente brilhantes de onde vai dar o progressismo social sem cortes. Tudo isso para dizer que qualquer previsão confiante sobre as consequências dessa decisão é provavelmente uma tolice. Não pode haver certeza sobre o futuro da política do aborto porque durante quase 50 anos todos os debates políticos foram ofuscados por controvérsias judiciais, e só agora estamos prestes a descobrir como realmente é a disputa.

É apenas o fim do começo; o verdadeiro fim, em qualquer acordo ou vitória, está à frente.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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