Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

Era do algoritmo cria embate entre inovação e decadência

Tecnologia sufoca o risco e a criatividade necessários na cultura

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The New York Times

Poucas de minhas opiniões sobre personagens de filmes são mais fortes que minha visão de que Miranda Priestly, a exigente editora-chefe de uma revista de moda em "O Diabo Veste Prada", é na realidade a heroína da história.

Não uma heroína descomplicada, com certeza não uma pessoa simpática, mas é uma figura a ser saudada, mesmo assim: uma esteta exigente e intransigente cujas decisões reverberam na sociedade e cujo gosto idiossincrático pode impactar a moda mundial.

Num dos momentos mais famosos do filme, Miranda explica como o suéter azul —ops, "cerúleo"— barato usado por sua assistente é na realidade "um suéter que foi selecionado para você pelas pessoas aqui presentes". O ponto final barato de um processo estético-comercial complexo que começa com uma única ideia brilhante.

Meryl Streep em "O Diabo Veste Prada" - Divulgação

Não sou exatamente fashionista (para dizer o mínimo), mas adoro essa cena. Por isso mesmo, chamou minha atenção o ensaio recente de Amanda Mull na revista The Atlantic em que ela sugere que a cena está fundamentalmente obsoleta. As Mirandas Priestlys da vida não mandam mais na moda, argumenta Mull. Quem manda hoje é o algoritmo.

O ensaio começa com um aparente paradoxo: num momento em que "o consumidor tem mais opções que nunca, pelo menos a julgar pelo simples volume de produtos disponíveis", ela escreve, "boa parte das roupas que acabam chegando às lojas parecem estranhamente iguais".

A explicação, ela sugere, é que cada vez mais a moda está separada "das ideias e dos instintos criativos de indivíduos", sendo dirigida em vez disso por uma combinação de modelos de produção mais barata e sistemas de previsão que "subtraem o elemento de palpite das tendências". A produção fabrica modas; o algoritmo reafirma aquilo que vende em menos tempo.

Como se poderia prever, "quando marcas e varejistas suficientes começam a usar essas táticas de formação de estoques e esses métodos de previsão de tendências, os resultados se homogeneizam ao longo do tempo".

Tudo é popular, mas nada é aquela coisa que você não sabia que desejava. E mesmo roupas que parecem superficialmente diferentes e novas geralmente são um reaproveitamento de tendências passadas: "acrescidas de novos detalhes", mas por baixo deles é o mesmo vestido de antes.

Essa repetição algorítmica não é apenas uma tendência da moda –é o espírito que prevalece em muitas áreas culturais. Aquilo que Mull observou em relação às roupas, o crítico Ted Gioia vem analisando na música, em que a era do Spotify nos oferece o que já foi testado e é popular, enquanto as oportunidades abertas a artistas novos encolhem.

Em lugar de mergulhar num processo de descoberta, o browser de música online é constantemente levado para o passado –e não para alguma comunhão com a história da música clássica, algo que pudesse expandir nossa consciência, mas apenas para Bruce Springsteen, Paul Simon e David Bowie, num círculo interminável da era dos baby boomers.

Segundo pesquisas de mercado recentes, observa Gioia, "o mercado de música nova está na realidade encolhendo", enquanto "os maiores investimentos em música são a aquisição de catálogos antigos, e não se gasta praticamente nada para desenvolver artistas novos".

A mesma coisa ocorre no cinema e na televisão: a hegemonia dos super-heróis, atores mais velhos dominando as bilheterias, o clima que permeia um certo tipo de streaming de televisão, geralmente na Netflix, que dá a impressão de ter sido produzida a partir de roteiros escritos por inteligência artificial, imitando 16 outros sucessos.

Mas não quero atribuir esses padrões apenas à tecnologia. As pessoas podem optar por ser regidas pelo pensamento algorítmico sem executar um programa literal para decifrar o que é popular. E o fato de termos uma forma específica de tecnologia que facilita o sufocamento do risco e da criatividade é difícil de diferenciar das tendências mais amplas à esclerose e à repetição —algo que eu passei um livro inteiro denominando decadência.

Considere duas controvérsias recentes na medicina e pesquisa médica, áreas distantes do mundo de Miranda Priestly. Primeiro houve a revelação de que bilhões de dólares e anos de pesquisas sobre a doença de Alzheimer foram baseados em artigos científicos que parecem incluir falsidades importantes. Se isso se confirmar, será um exemplo surpreendente do establishment médico avançando por um beco sem saída incrivelmente caro, sem que se tenha dado ouvidos aos céticos, por uma década e meia.

Em segundo lugar, há a discussão ainda em curso, ligada a dois estudos recentes sobre como e se os antidepressivos mais frequentemente receitados funcionam de fato. Algumas das pesquisas novas foram superestimadas pelos críticos da psiquiatria; a premissa de que a depressão possui componentes químicos importantes e que os antidepressivos ajudam as pessoas, especialmente as que têm depressão grave, não foi desmentida de repente.

Mas ambos os estudos vêm se somar à desconfiança forte de que esses medicamentos são excessivamente receitados e vendidos –que fizemos deles a resposta padrão à infelicidade moderna, com base mais numa esperança coletiva que em evidências precisas.

Possível fraude e possível prescrição excessiva são tipos distintos de problemas, mas ambos ilustram como maus incentivos culturais e institucionais podem sufocar a criatividade tão certamente quanto a sufocam os algoritmos da Netflix.

Uma enxurrada de prescrições médicas e dólares de pesquisa indo na direção errada, porque todo mundo quer imitar todo mundo, é o equivalente científico a todo mundo produzir o mesmo vestido porque parece ser isso que as consumidoras querem —nenhum algoritmo literal em ação, apenas uma mente coletiva em que uma voz discordante tem dificuldade em se fazer ouvir.

Esse tipo de sistema não é impermeável à inovação ou às críticas. Se fosse, as fraudes científicas jamais seriam descobertas e a Netflix não teria perdido quase 1 milhão de assinantes recentemente.

Mas resistir ao domínio do algoritmo requer energia, criatividade e coragem, e o risco para nossa cultura é que nossas habilidades tecnológicas e nossa exaustão cultural estejam atuando em parceria, defendendo a decadência e fechando os caminhos de fuga da mesmice.

Tradução de Clara Allain

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