Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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O que a decisão no Kansas diz sobre a nova política do aborto?

Reversão do caso Roe vs. Wade abre as portas para um movimento pró-vida criativo, mas não garante que ele surgirá

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The New York Times

Alguns liberais pareceram realmente surpresos com os resultados do referendo sobre o aborto no Kansas. Um estado confiavelmente republicano, uma imensa vitória pró-escolha. Quem poderia prever isso?

Outros sugeriram que apenas o lado antiaborto deveria estar chocado. "O movimento antiaborto, há muito, afirma que os eleitores recompensariam os republicanos por reverter Roe [vs. Wade]", escreveu Mark Joseph Stern, da revista Slate. "Agora eles estão descobrindo que essa convicção sempre foi ilusória."

É verdade que os ativistas tendem, muitas vezes, a um otimismo irreal, mas ninguém que seja a favor da derrubada do caso Roe deveria ficar particularmente surpreso com o resultado no Kansas. Pela margem, talvez. Mas um estado republicano votar pela manutenção do direito ao aborto salienta o que sempre foi aparente: com o fim de Roe, o chamado movimento "pró-vida" agora precisa se adaptar à disputa democrática que buscava.

Defensores do direito ao aborto comemoram resultado que barrou emenda à Constituição que facilitaria leis contrárias a procedimentos abortivos, no estado americano do Kansas - Evert Nelson - 08.ago.22/USA Today/Reuters

No momento, a maioria dos americanos é a favor de restrições ao aborto que foram descartadas sob a decisão Roe, mas só pouco mais de um terço do país assume a posição de que o procedimento deveria ser amplamente ilegal, número que diminui se você remover várias exceções.

Isso significa que milhões de americanos que votaram em Donald Trump são a favor do direito ao aborto nos primeiros três meses da gestação –alguns deles republicanos tradicionais e antiquados, outros eleitores seculares da classe trabalhadora ou conservadores não atuantes, que não gostam do progressismo de elite mas também acham o conservadorismo religioso alienante.

Em muitos estados vermelhos (republicanos), assim como roxos (mistos), esses eleitorados mantêm o equilíbrio de poder. Mesmo com exceções, um estado provavelmente precisa ser muito republicano ou muito religioso para que a proibição do aborto no primeiro trimestre seja aprovada popularmente, o que basicamente significa o "sul profundo" e o "oeste montanhoso" (especialmente mórmon).

Isso ficou claro antes da queda de Roe —que proibições definitivas seriam as exceções, e a disputa em muitos estados seria sobre até onde podem ir as restrições.

O resultado no Kansas confirma essa suposição. O estado já tem uma proibição em casos de gravidez avançada, e a extensa medida posta em votação não especificava uma alternativa; apenas prometia ao Legislativo um poder geral para escrever novas leis sobre o aborto. O resultado teria sido diferente se o referendo tivesse proposto restrições em torno de 12 semanas? Suspeito que sim. O movimento antiaborto pode se contentar com esse tipo de objetivo? Bem, essa é a questão —com diferentes estados fornecendo respostas diferentes.

Na Geórgia arroxeada, o governador Brian Kemp assinou uma lei em 2019, que agora entra em vigor, proibindo o aborto após cerca de seis semanas, com várias exceções; parece que ele está a caminho da reeleição. Na avermelhada Flórida, o popular governador Ron DeSantis está defendendo por enquanto a proibição após 15 semanas.

Por outro lado, os indicados republicanos a governadores na Pensilvânia e em Michigan têm um histórico de adotar poucas posições de exceção que parecem inadequadas aos seus estados.

Suspeito que os liberais estejam se enganando se imaginam que o aborto se tornará uma questão dominante em um ambiente tão carregado econômica e geopoliticamente quanto o atual. Mas nas margens há oportunidades claras: se os republicanos disputarem com uma postura "sem exceções" em estados moderadamente conservadores ou apoiarem a proibição do aborto nos primeiros três meses de gravidez em estados indecisos, perderão algumas eleições que poderiam vencer.

Mas, novamente, os pró-vida sérios sempre souberam que se você trouxer o aborto de volta ao processo democrático terá que lidar com a opinião pública como ela é de fato. E a maneira como se muda a opinião pública é provando que a versão incremental de suas ideias é viável, para que os eleitores confiem cada vez mais em você.

Isso requer abordar as ansiedades imediatas de frente. Não basta, por exemplo, que os opositores ao tema reajam a histórias sobre demora no atendimento a abortos espontâneos ou gravidezes ectópicas, apontando que as leis estaduais estão sendo mal interpretadas. Todos os funcionários públicos nesses estados devem ser mobilizados para que os hospitais temam mais os processos por negligência do que os hipotéticos processos por aborto.

E requer criatividade a longo prazo para que cada nova proteção ao nascituro seja combinada com garantias de que mães e filhos terão melhor apoio do que têm hoje.

Quando defendo este último ponto, recebo uma réplica liberal confiável no sentido de que os republicanos já poderiam ter feito mais pelas famílias e não fizeram, então por que isso mudaria?

Mas esse é o ponto de exercer a pressão democrática de fato. Os conservadores religiosos afastaram os republicanos da economia libertária no passado –o "conservadorismo compassivo" surgiu de evangélicos e católicos–, mas enquanto o aborto era essencialmente uma batalha judicial o vínculo com a política familiar era indireto.

Agora que os republicanos precisam legislar sobre o aborto, porém, há incentivos para tornar o vínculo explícito –especialmente em estados onde democratas socialmente conservadores, especialmente os eleitores hispânicos, podem se juntar a uma coalizão antiaborto.

Isso não significa que vá acontecer, apenas que os incentivos da política democrática são como aconteceria. O fim de Roe abre as portas para um movimento pró-vida incrementalista e criativo; não garante que tal movimento surgirá. Mas os resultados no Kansas mostram o que acontecerá se ele não surgir.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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