Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Realidade enfim mudou de lado e em 2022 tem um viés conservador

Foi Trump quem fechou lacuna entre o Partido Republicano e a realidade; agora, democratas precisam de líderes que façam o mesmo

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The New York Times

"É sabido que a realidade tem um viés liberal", observou Stephen Colbert no Jantar dos Correspondentes da Casa Branca em 2006. Isso foi na época em que Colbert representava uma caricatura de conservador, em vez de uma caricatura de um liberal (ou, pelo menos, imagino que seja isso que ele esteja fazendo em seu talk show noturno atual), e a frase soou perfeita no meio de uma década em que a realidade bateu pesado nas teorias de mundo do Partido Republicano.

Naquela época, nos anos passados entre a invasão do Iraque e a reeleição de Barack Obama, o Partido Republicano apostou tudo na ideia de que a Guerra do Iraque desarmaria um ditador (os armamentos em questão não existiam, na maioria) e revolucionaria o Oriente Médio (isso ela fez, mas não para melhor).

O presidente Joe Biden desembarca do Air Force One em aeroporto em Warwick, no estado de Rhode Island
O presidente Joe Biden desembarca do Air Force One em aeroporto em Warwick, no estado de Rhode Island - Brendan Smialowski - 20.jul.22/AFP

No plano doméstico, apostou nos cortes de impostos e numa bolha imobiliária, continuando a alardear a força da economia da era de George W. Bush até a pior crise financeira desde a década de 1920.

No primeiro mandato de Obama, o Partido Republicano apostou tudo na ideia de que gastos deficitários e dinheiro fácil desencadeariam uma inflação galopante ou uma crise de dívida (isso não aconteceu), que o Obamacare devastaria o mercado da saúde (apesar de suas falhas, isso tampouco aconteceu) e que a reforma dos benefícios sociais era a medida correta a adotar numa economia que se recuperava lentamente (foi uma meta boa para o longo prazo, mas não uma prioridade ideal para 2010).

E, num pequeno toque final, o Partido Republicano supôs que as pesquisas estivessem enviesadas contra Mitt Romney em 2012, algo que elas enfaticamente não estavam.

Eu participei de parte disso tudo, sobrestimando a urgência do problema do déficit e os riscos do Obamacare. Por isso mesmo, tenho experiência, da qual observo que os democratas estão tendo dificuldades em 2022 porque a realidade finalmente mudou de lado e agora tem um viés conservador.

O que a realidade trouxe ao país? Para um Partido Democrata que se convenceu de que no curto prazo havia poucos limites a quanto estímulo podia ser injetado na economia, a pior inflação desde os anos 1980. Para um Partido Democrata que passou a era Trump se persuadindo a acreditar que implementar as leis de imigração é imoral, a priori, e que uma anistia imigratória "de facto" não encerra desvantagens reais, a realidade apresentou o mais alto índice já registrado de travessias ilegais na fronteira sul.

E para um Partido Democrata cuja plataforma de 2020 prometeu "encerrar a era do encarceramento em massa e reduzir drasticamente o número de americanos detidos em cadeias e prisões, ao mesmo tempo continuando a reduzir os índices de criminalidade", ela trouxe índices de homicídio que vêm subindo há alguns anos e que erradicaram pelo menos 20 anos de melhorias nesse quesito.

O ponto mais importante a destacar nesses fatos é que eles não provam que os progressistas estão simplesmente "equivocados em relação ao crime" ou "equivocados em relação à inflação", assim como os eventos de 2003-12 não provaram simplesmente que os conservadores "erraram em relação à política externa" ou "estão equivocados em relação à reforma dos benefícios sociais".

O que ocorre é que as promessas e os compromissos ideológicos e partidários existem numa relação dinâmica com a realidade. Você pode acertar por algum tempo, às vezes por muito tempo, e então ultrapassar um ponto de inflexão, e as medidas que você preconiza começam a revelar os aspectos negativos para os quais seus rivais o alertaram e que você se convenceu de que não existiam.

Assim, na situação atual, o fato de os EUA estarem passando por uma onda séria de criminalidade neste momento não prova que os democratas (e muitos republicanos) se equivocaram sobre a reforma da justiça criminal dez ou 15 anos atrás. Apenas sugere que há um momento em que a política de encarcerar menos ou descriminalizar pode precisar de uma correção, uma medida de intransigência com o crime.

Do mesmo modo, os democratas não se equivocaram sobre os riscos de inflação serem baixos na era de Obama ou no passado recente. É apenas que, excetuando algumas vozes proféticas pessimistas como Larry Summers, eles estavam equivocados quando imaginaram que esses riscos pudessem ser minimizados para sempre, que não existia um limite aos gastos da era da Covid.

Da mesma maneira, a inflação atual não confirma retrospectivamente as previsões dos críticos do déficit da era de Obama –mas sugere que pode ser válido considerar novamente algumas das propostas deles.

Assim, a pergunta a ser feita após a eleição desta terça-feira não é se os democratas vão abandonar sua ideologia, mas se a ideologia será capaz de se adaptar ao que a realidade está dizendo.

E, quer seja para Joe Biden ou seus possíveis sucessores, existe um modelo recente disponível: logo após a era em que a piadinha de Colbert teve graça, emergiu um líder que persuadiu o Partido Republicano a abandonar sua fixação com o déficit e simplesmente administrar a economia a quente, que endossou o seguro-saúde universal e se comprometeu a proteger os benefícios sociais, que reconheceu que a Guerra do Iraque foi um erro grave e prometeu uma política externa menos utópica, mais pragmática.

Isso mesmo: foi Donald Trump quem fechou a lacuna entre o Partido Republicano e a realidade –em seu discurso, mesmo que nem sempre em suas políticas de fato. Agora, os democratas, diante de um encontro gelado com o viés conservador da realidade, precisam de líderes que possam fazer o mesmo.

Tradução de Clara Allain

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