Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é membro da Academia Brasileira de Letras.

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Ruy Castro
Descrição de chapéu

Arte performática

A pobreza nos salva do excesso de criatividade

Resultado da datilografia de 'Adeus às Armas', de Ernest Hemingway, executada por Tim Youd na Itália, em 2017
Resultado da datilografia de 'Adeus às Armas', de Ernest Hemingway, executada por Tim Youd na Itália, em 2017 - Divulgação/Vassar College

Nada como um mercado rico, aberto a todas as possibilidades. O jornal The New York Times falou outro dia de um artista performático chamado Tim Youd, cuja especialidade é datilografar grandes romances. Não se trata de datilografar manuscritos originais, como os de “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen, ou “Moby Dick”, de Herman Melville, anteriores à máquina de escrever, para ver como eles ficariam se tivessem sido batidos a máquina por seus autores. 

A proposta de Youd é mais ousada. Ele escolhe um romance sobre o qual não resta a menor dúvida —“Adeus às Armas”, de Hemingway, ou “O Som e a Fúria”, de Faulkner, digamos—, e descobre em que cidade ele foi escrito e em qual modelo ou marca de máquina de escrever. Daí marcha para esta cidade com uma máquina igualzinha e lá, sob farto aparato oficial —o órgão de cultura local se sente honrado em patrociná-lo—, senta-se a uma mesa, abre uma edição impressa do livro, põe uma folha de papel na máquina e, com dois dedos, começa a bater o texto. 

Mas não é uma datilografia corriqueira, careta, em que as palavras do autor são fielmente transcritas em folhas de papel. Youd usa uma única folha de papel. Quando o texto chega ao fim da página, ele tira o papel da máquina e o põe de novo, do mesmo lado, e retoma a datilografia. As palavras começam a se atropelar e a se sobrepor, até que, depois de datilografadas as 200 ou 300 páginas do livro, a folha já se tornou um borrão preto ilegível.

E, se não fosse assim, seria ilegível do mesmo jeito porque Youd ignora os espaços, pontos e vírgulas, e bate o livro inteiro comosefosseumasópalavraentendeu?. E, quando erra, não volta atrás —deixa errado e vai em frente, qual é a diferença? 

Como eu disse, nada como um mercado rico, aberto a todas as possibilidades. Isso nos salva de trazer Youd ao Rio para datilografar o “Grande Sertão: Veredas”. 

Youd datilografou 'Big Sur', de Jack Kerouac, em Big Sur, na Califórnia, em julho de 2015
Youd datilografou 'Big Sur', de Jack Kerouac, em Big Sur, na Califórnia, em julho de 2015 - Divulgação/Vassar College

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