Aconteceu algumas vezes nos últimos dez anos. A trabalho em São Paulo, vasculhando os sebos da praça João Mendes em busca de literatura brasileira do começo do século 20, vinha-me a voz de um vendedor dizendo: "Oi, Ruy! Encontrou alguma coisa? Sabe quem acabou de sair daqui e estava consultando justamente essas prateleiras? O Tinhorão!". Pronto. Com isso, eu podia tirar o cavalo da chuva —sabia que, se houvesse ali alguma coisa interessante, José Ramos Tinhorão já a teria capturado. Só me restava esperar que o que ele descobrira viesse à tona em algum de seus incríveis livros sobre a cultura popular brasileira.
Tinhorão morreu nesta terça (3), em São Paulo, aos 93 anos, o que deve ter provocado reações como "Já vai tarde!" em não poucas pessoas. Durante anos, houve uma guerra surda, mas não muda, entre ele e o pessoal da bossa nova e de qualquer tipo de música que se fizesse aqui com o mais leve sotaque estrangeiro. Era tão caninamente nacionalista e cioso das raízes que não sei como não se rebelava contra a polca e a habanera.
Mas, para mim, que bom que ele fosse assim. No Brasil, cuidamos muito bem da cultura alheia, em particular da americana, e pouco da nossa. Tinhorão lia tudo, escutava tudo, guardava tudo. Ninguém escreveu com tanta documentação sobre a tomada das cidades pela música a partir do século 18, e não por acaso um de seus livros é "Os Sons Que Vêm da Rua". Mas os três volumes de "A Música Popular no Romance Brasileiro" e a biografia de Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), o poeta da viola, da modinha e do lundu, também são de dar inveja.
Por Tinhorão detestar a bossa nova e eu ter escrito livros sobre ela, alguns nos julgavam inimigos. Ao contrário, sempre nos demos bem, e Tinhorão foi uma de minhas fontes em "Chega de Saudade".
Era possível aprender com ele mesmo discordando— o que é muito melhor do que concordar com quem não nos ensina nada.
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