Samuel Pessôa

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

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Samuel Pessôa

Em 'Bacurau', o inferno são os outros

Apesar da qualidade, a reflexão da sociedade que o filme propõe é simplista

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Barbara Colen em cena de 'Bacurau', de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
Barbara Colen em cena de 'Bacurau', de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles - Victor Jucá/ Divulgação

Gosto sempre dos filmes do diretor Kleber Mendonça Filho. Apreciei "Bacurau", assinado também por Juliano Dornelles. Recomendo, mas devo dizer que deixei o cinema insatisfeito. Apesar de toda a qualidade, a reflexão da sociedade que o filme propõe é extremamente simplista.

Em "O Som ao Redor", havia uma tentativa de olhar para o país a partir de nossas contradições.

Eram tempos de governos do PT, e talvez isso contribuísse para que artistas simpáticos ao partido fossem menos maniqueístas.

Conforme o país foi pendendo para a direita, piorou a capacidade de reflexão da esquerda.

A história se passa em um futuro próximo. Em um pequeno vilarejo no oeste pernambucano, vive uma comunidade simples em meio à degradação geral do Estado. Tudo sugere que se vive em paz, apesar das privações provocadas pela pobreza e da deficiência dos serviços públicos.

Atenção, spoiler nos próximos seis parágrafos.

A cidadezinha imaginada pelo cineasta, uma espécie de Comunidade Eclesial de Base como sonhada pelos padres de esquerda nas décadas de 1970 e 1980, conjuga elementos de sociedade tradicional com valores tolerantes e progressistas típicos dos grandes centros urbanos.

Em Bacurau, há tolerância quando as pessoas exageram no álcool e "dão barraco"; as mulheres são empoderadas --convidam os homens que desejam para passar a noite e nas cenas de sexo estão por cima; o herói, bandido que ajudará a salvar o vilarejo da destruição, tem sexualidade ambígua; há ciência dos fatos e se pratica a livre escolha.

De resto, nunca sabemos ao certo como as pessoas em Bacurau pagam suas contas. Como no nosso imaginário de uma aldeia indígena, de forma meio lúdica os recursos aparecem.

A sociedade não tolera o político local. Da elite branca, vive no município vizinho e só aparece em momentos de eleição.

Com a ajuda de um casal de viajantes do Sudeste --ela carioca, ele paulista-- e em conluio com o político local, um grupo de gringos ricos e entediados se dirige à cidade para um safári humano. São norte-americanos, liderados por um alemão. Provavelmente se cansaram dos jogos eletrônicos e desejam mais adrenalina.

O roteiro poderia ter saído diretamente das páginas de um texto marxista dos anos 1960 --por exemplo, da teoria da dependência de um Andre Gunder Frank. Nos dois casos, o capital privado nacional, incapaz de produzir um capitalismo autônomo e independente, associa-se ao grande capital para espoliar os trabalhadores, tudo isso com a aquiescência dos políticos. Em Bacurau, com a ajuda do bandido, o povo se organiza e se liberta. Viva a revolução, gesto de defesa contra a violência do capitalismo.

Saí do filme com a sensação de que será impossível para os artistas "de esquerda" entender boa parte das mudanças sociais por que vem passando o Brasil. Em particular, o enorme crescimento das igrejas evangélicas.

Em vez do paraíso na terra das Comunidades Eclesiais de Base, parcela crescente da população, principalmente entre os mais pobres, anseia por uma vida de consumo --um consumo guiado e possibilitado por disciplina, trabalho, moderação no consumo de álcool e temor a Deus.

As igrejas evangélicas, bem ou mal, têm integrado as pessoas que delas tomam partido neste mundo que existe. A Igreja Católica sempre prometeu o Céu. Quando se voltou para a vida real, conseguiu prometer o paraíso na terra uma vez realizada a revolução.

A revolução não virá. A Venezuela é só mais um exemplo. As denominações pentecostais continuarão a crescer entre nós.

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