Sergio Firpo

Professor de economia e coordenador do Centro de Ciência de Dados do Insper

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A cada mil brasileiros, um está em situação de rua

Vínculos frágeis com o mercado de trabalho estão na raiz de um processo lento de rompimentos sociais e familiares que leva à situação de rua

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Em 2020, antes da pandemia, as estimativas do número de pessoas em situação de rua no Brasil eram de 180 a 220 mil, de acordo com diferentes estudos, como os de Marco Natalino e de Ricardo Paes de Barros e coautores. Dado o número de habitantes em nosso país, esse montante corresponde a uma pessoa a cada mil sem ter, temporária ou permanentemente, moradia regular, tendo que pernoitar em albergues ou em logradouros públicos.

Houve um grande aumento da população de rua entre 2018 e 2020, que não é explicado pela pandemia iniciada em 2020, mas que é reflexo do que aconteceu com a economia brasileira entre 2015 e 2017. O aumento do desemprego e a perda de renda nesse período contribuíram para que, paulatinamente, chefes de família começassem o lento processo de distanciamento de seus familiares e de redes informais de suporte, o qual precede a situação de rua.

Políticas públicas voltadas para essa população têm que lidar com a heterogeneidade do público-alvo. Em geral, políticas voltadas ao restabelecimento de vínculos com o mercado de trabalho têm eficácia apenas sobre uma parcela da população em situação de rua, que é aquela que está na rua há menos de seis meses. Políticas específicas que visem a recomposição da renda e do emprego são eficazes, desde que sejam ágeis na identificação de quem responderá a elas. Atrelada à reconexão ao mercado de trabalho, é crucial para o sucesso da política a rápida, ainda que temporária, oferta de moradia.

Barracas utilizadas por moradores de rua na praça da Sé, no centro paulistano - Mathilde Missioneiro - 5.jan.22/Folhapress

Um pouco menos de 40% da população em situação de rua estava nessa condição havia menos de seis meses; outros 25% estavam vivendo assim entre seis meses e dois anos. Ou seja, o grosso de quem está na rua potencialmente responderia a esse tipo de intervenção.

A fração daqueles que estão há muito tempo na rua é pequena, contudo. A máxima precariedade e a falta de dignidade fazem com que a sobrevida na rua seja curta. Problemas crônicos de saúde, incluindo a mental, e de abuso de substâncias ajudam a reduzir a expectativa de vida da população de rua.

Para aqueles que estão há mais tempo em situação de rua, políticas humanitárias de acolhimento com abrigos e acesso específico a aparelhos do sistema de saúde ajudam a devolver alguma dignidade, pois políticas de reemprego ou de oferta de moradia costumam ser ineficazes para tirar essa população da rua. A reinserção nesses casos é muito mais complexa.

Como no ditado popular, é melhor prevenir do que remediar. E a prevenção aqui passa pela manutenção da população em risco vinculada ao mercado de trabalho. Em geral, correm mais riscos de se encontrarem em situação de rua homens negros com baixa escolaridade vivendo em regiões urbanas. Nesse sentido, políticas que evitem longos períodos de desemprego após a perda de um emprego com carteira, ou que ajudem a recompor rapidamente o rendimento nos períodos de flutuação negativa da renda de trabalhadores por conta própria, não são apenas importantes no curto, mas são antídotos, no longo prazo, para tragédias pessoais que poderiam ser evitadas.

Para além da falta de uma moradia regular, quem vai para a rua consegue, quase que magicamente, deixar de ser alguém por quem nutrimos empatia. A pessoa perde sua humanidade aos nossos olhos. Torna-se, sobretudo, um problema a ser resolvido, ou removido. Nossa história recente não deixa dúvidas quanto à forma como tristemente temos lidado com essa população.

Ateamos fogo nos que dormem; conduzimo-los como rebanhos de zumbis no centro da cidade; instalamos pedras sob viadutos para que lá não durmam; olhamos com incredulidade uma relação sexual entre uma mulher e um homem em situação de rua.

Após 2020 e 2021, em que boa parte dos trabalhadores sofreu perdas de renda e emprego por conta da pandemia, ainda que amenizadas pelas transferências emergenciais, é de se esperar que, nos próximos meses, o lento processo que precede a situação de rua culmine com um aumento do número de pessoas nessa condição. Que estejamos, nós e nossos governantes, preparados e sensibilizados para lidar com quem nós somos.

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