Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu

O quebra-pau do século

Entrevista de Jordan Peterson nos diz muito sobre nossa intolerância

O psicólogo canadense Jordan Peterson, 55, um liberal que se destaca por sua crítica contundente das políticas identitárias, é uma voz conservadora em alta. Uma alta que há duas semanas chegou à categoria de disparada irracional por causa de uma entrevista de TV.

Peço desculpas a quem considera notícia velha o papo de Peterson com a jornalista Cathy Newman, 43, do canal inglês Channel 4, no dia 16 de janeiro. O colunista não pode impedir o mundo de continuar produzindo notícias enquanto ele tira férias.

De todo modo, não creio nesse envelhecimento. Com mais de 5 milhões de visualizações no YouTube, o embate Peterson-Newman ainda merecerá ser visto daqui a anos. É um daqueles momentos em que parte substancial das feições do espírito de uma época se cristaliza de modo nítido diante de nós.


Tornado imperdível por razões opostas às pretendidas pela entrevistadora, o programa de meia hora diz muito sobre como andamos nos entendendo --e sobretudo nos desentendendo.

De saída parece que veremos um debate de verdade: de um lado, um conservador inteligente e culto, amante de generalizações provocadoras e pouco dado a contemporizações; do outro, uma combativa jornalista de esquerda disposta a expor as fragilidades do adversário.

Alarme falso. O que vemos é um 7 a 1 jornalístico: uma entrevistadora agressiva que distorce cada uma das respostas que recebe, numa série vertiginosa de tentativas de apresentar seu convidado como um monstro moral. E falha em todas elas.

Dizer que os tiros saem pela culatra é pouco. Incapaz de ouvir o que Peterson diz sobre questões controversas de gênero, ela parafraseia argumentos ponderados --não inatacáveis, mas sólidos-- para que soem como idiotices ultrajantes.

A temperatura sobe tanto que a tática poderia dar certo, caso levasse o entrevistado a perder a cabeça e disparar de fato uma idiotice ultrajante. Mas Peterson mantém uma frieza de monge. "Eu sou muito, muito, muito cuidadoso com minhas palavras", diz.

Newman não é. Suas perguntas de má-fé metralham "fake news" frustradas como se não houvesse amanhã, fazendo jogo de cena para uma torcida de convertidos. Cômico e logo constrangedor, seu desmoronamento acaba por atingir o estágio da iluminação.

Não falo de conteúdo, mas de forma. Jordan Peterson é um conservador atacado com tais armas sujas pelo flanco esquerdo, mas o mesmo ocorre com progressistas atacados pelo flanco direito pela Fox News, por exemplo.

Em que momento da história passou a ser possível confundir uma postura combativa no campo das ideias com o rebolado das "cheerleaders" do linchamento moral?

Até que ponto essa recusa obstinada a ouvir o outro, típica de nossos debates político-ideológicos, traduz o pânico de ser convencido por ideias melhores que as nossas?

Seria tal mecanismo igual ao que produz em certos indivíduos sentimentos de desconforto e até de ódio diante de manifestações de afeto entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo? Sentimentos que mal escondem sob sua carranca agressiva abismos de fascínio e desejo?

Quantas vezes temos feito o triste papel de Cathy Newman em nossos quebra-paus? Como sairemos do buraco assim?

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