Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Notícias falsas

Se a ignorância é um dos alimentos das 'fake news', nome sem tradução não ajuda a combatê-las

Um amigo me fala da conversa sobre "fake news" que teve dia desses no Uber. O motorista se espantou ao ser informado de que a expressão significa "notícias falsas". Engraçado, não? Mas só nos primeiros dez segundos.

Passado o riso, fiquei pensativo. O bom senso nos garante que a ignorância é um alimento (não o único, talvez nem o principal, mas importante) do minotauro de desinformação que assombra o labirinto das redes sociais.

Imagem de comercial de Donald Trump que qualifica a mídia como fake news
Imagem de comercial de Donald Trump que qualifica a mídia como fake news - Reprodução

Cabe portanto a suspeita de que o nome estrangeiro —que no Brasil, como tem sido a regra, adotamos sem tradução— contribua com sua obscuridade para agravar um problema que, mesmo quando nomeado com clareza, nada tem de simples. Quem o minimiza dizendo que mentira sempre existiu não entendeu que a novidade desafiadora está nas redes sociais, não na calúnia. 

Convém deixar a xenofobia longe dessa conversa. A adoção de palavras estrangeiras sem tradução é um fenômeno complicado: se em seus excessos barrocos mora uma inegável jequice, há muito de funcional em grande parte dos empréstimos. Essa é uma pasta lotada que não vem ao caso abrir agora.

(No dia em que ela for aberta, teremos de desmontar o mito de que Portugal trata o vernáculo com impecável pudor, enquanto o Brasil cai na cantada de qualquer estrangeirismo que passe na rua. Não é bem assim: "terceirização" é "outsourcing" para os irmãos lusitanos, por exemplo, e nossa onipresente "tela" atende lá por "ecrã". Mas chega de espiar a pasta que não abriremos.)

O problema não são as palavras estrangeiras em si, mas a possibilidade de que, soando a ouvidos monoglotas como um rosnado cheio de som e fúria, mas sem sentido, a expressão "fake news" jogue contra aquilo que teremos de estimular para impedir que o tsunami de notícias falsas inunde tudo: compreensão, boas informações, espírito crítico para processá-las.

Seria uma mostra de ingenuidade e desconhecimento da natureza humana atribuir só à ignorância o sucesso que o cascatol faz nas redes sociais --em estudo recente do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), restrito ao Twitter e expurgado dos perfis não humanos, constatou-se que as notícias falsas têm 70% mais chances de compartilhamento e viajam seis vezes mais depressa que as verdadeiras.

O episódio das grotescas falsidades sobre Marielle Franco espalhadas pela desembargadora Marília Castro Neves foi um lembrete de que, mundo afora, milhões de pessoas com alto grau de escolaridade e acesso a informação confiável também divulgam mentiras fabricadas por manipuladores profissionais. Por quê?

A resposta, complexa, ainda está sendo buscada, e dela vai depender o grau de desvario do debate nos próximos tempos. Descartada a ignorância, restam na mesa muitas cartas que podem entrar no jogo ou não, do ódio político a considerações sobre o caráter. Mas parece que sempre falta algo.

Em algum momento será preciso arquivar o pensamento relativista de que não existem fatos, só versões --um xodó da esquerda acadêmica que, adotado como lema nas fábricas de notícias falsas, a direita também abraçou com gosto. Para a ética do debate público, é fundamental reconhecer que há o verdadeiro e há o falso, sim. E chamá-los pelo nome.

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