Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu

Depois daquele minete

Colunista discorda dos patriotas do sexo oral e sugere outro rumo ao orgulho nacional ferido

Cena do filme "50 Tons de Cinza"
Cena do filme "50 Tons de Cinza" - Divulgação via Associated Press
 
 

Escrever é um ato de insensatez que multiplica leituras, desleituras, tresleituras e outras travessuras. Eis sua mágica. Podemos dormir intranquilos, certos de que o tédio do sentido único jamais se instalará no reino das palavras (e para isso nem é preciso tomar liberdades com elas, como fiz neste parágrafo).

A coluna da semana passada sobre o substantivo “minete” não pretendia ser mais do que uma crônica leve sobre determinada dissonância, entre muitas, que a bem-vinda diversidade de uma língua presente em vários continentes usa como tempero na comunicação entre seus falantes.

Naturalmente, consultei dicionários antes de afirmar que a palavra —com o sentido de “cunnilingus, sexo oral em mulheres”— é um pitéu vocabular que, embora goze de grande popularidade em Portugal e na África, “de fato não existe para a maioria” dos brasileiros. 

Consultar dicionários é a parte fácil dessa brincadeira de escrever sobre palavras. Mais difícil é enxergar a paisagem linguística que se descortina para além deles e desconfiar que “Aurélio” e “Houaiss”, ao classificar “minete” como brasileirismo, estão variando. 

Talvez nem seja tão difícil, mas requer algum juízo, reconhecer também que a sugestão oferecida por nossos bravos lexicógrafos para a ocasião, “cunilíngua”, é um latinismo artificial que não existe na língua das ruas, aquela que as pessoas falam de verdade. 

Como era justamente esta, a língua viva, que o escritor angolano José Eduardo Agualusa mirava ao lançar sua provocação marota de que os brasileiros ignoram o minete, optei por uma defesa em dois tempos. Alto lá, que o ato não ignoramos, pá! Mas temos uma boa palavra para nomeá-lo, substantivamente? Temos não.

Tudo indica que já tivemos, e que até o fim dos anos 1950 nosso país se incluía na confraria lusófona que reconhece o minete e os mineteiros como vocábulos tabuísticos de truz. Caberia investigar por que isso mudou, se terá algo a ver com nosso machismo rampante ou é apenas mais um sintoma do distanciamento cultural entre Portugal e Brasil. Mas que mudou é evidente.

Para minha surpresa, um bom número de reações enfezadas ao texto brincalhão acabou revelando traços brasileiros pouco lisonjeiros que eu não planejava afrontar naquele momento: o apego cartorial a dicionários, como se eles detivessem a última palavra sobre toda discussão acerca da língua (detêm a primeira, de modo geral); e um orgulho patriótico mais sensível que planta dormideira.

Sendo assim, proponho um trato. Estou disposto a admitir que “minete” é um brasileirismo exportado com imenso sucesso para Portugal e África —e se por aqui poucos sabem o que significa, paciência. Prometo ainda usar com frequência e ajudar a difundir o elegante substantivo “cunilíngua”. Não me custa muito. Nosso país já está fraturado e confuso demais para que questões tão pequenas nos dividam.

Em troca, gostaria apenas que concordássemos sobre outro ponto: é ridículo e inadmissível que, numa grande empresa, o chefe da segurança se meta nas deliberações do departamento jurídico, quem sabe de olho na cadeira do CEO. Isso, sim, deveria ferir profundamente o orgulho nacional.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.