Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu

Longelândia

Ninguém nega que o lugar fica longe de ser decente, mas toda a concordância acaba aí

Polícia cerca área de manifestantes durante ato a favor de Lula em Curitiba
Polícia cerca área de manifestantes durante ato a favor de Lula em Curitiba - Rodolfo Buhrer - 08.abr.2018/ Reuters
 

O primeiro fato a ser destacado sobre Longelândia é que fica longe. Tanto no papel de adjetivo quanto no de advérbio, longe é uma noção relativa, claro: depende do ponto de vista. Mas todos concordam que Longelândia fica longe de ser uma terra decente. 

As fontes históricas se contradizem sobre a origem do nome do lugar. Recentemente, ganhou fôlego a tese moderninha de que seu sentido primitivo seria o de “Terra do Lounge”, como se por lá abundassem sofás, espreguiçadeiras, luz baixa e musiquinha de happy hour.

Há argumentos curiosos em defesa dessa teoria, como a ideia de conforto e relaxamento eterno em berço esplêndido que habita os sonhos dos nativos, para não mencionar o comovente fascínio da maioria deles pela língua inglesa. Mas a verdade é que nenhum etimologista sério assina embaixo dessa versão.

A tese mais respeitável é a de que o nome do lugar deriva do hábito nacional atávico, quase um cacoete, de projetar a realização de seu gigantesco potencial —inegável e inebriante, mas arisco— num futuro longínquo.

Um futuro longínquo que, como em determinada lógica onírica, parece sempre destinado a ficar mais distante quanto mais perto se chega dele.

E já que falamos dos nativos, registre-se que também sobre seu gentílico paira controvérsia. Alguns dos habitantes de Longelândia se identificam como longelandinos; outros, como longelandenses. Até hoje, todas as tentativas de fazê-los adotar um nome comum foram frustradas.

A campanha pela unificação do gentílico dos nativos de Longelândia que mais se aproximou do sucesso foi a que tentou fazê-los abrir mão de suas diferenças para abraçar uma terceira via —a dos longelandianos.  No fim das contas, contudo, o chamado Movimento Cívico Longelandiano (MCL) também passou longe de resolver o problema. Foi fulminado pela ruidosa dissidência longelandesa.

Há analistas que enxergam nesse cisma vocabular um espelho simbólico da rachadura concreta que atravessa na horizontal a sociedade de Longelândia, uma das mais desiguais do mundo –um problema 
que vem de muito, muito longe.

Têm ficado cada vez mais violentas as discordâncias entre longelandinos e longelandenses sobre o melhor caminho para conduzir sua sociedade ao futuro longínquo e fugidio em que Longelândia poderá se declarar por fim —será mesmo?, quem sabe, vale a fé— uma terra decente.

Com escárnio e punhos cerrados, longelandinos e longelandenses passaram a se referir uns aos outros usando metáforas de salgadinhos e embutidos baratos, enquanto sonham com o dia em que o outro lado vai simplesmente sumir no abismo que se alarga dia a dia entre eles.

Certos observadores mais pessimistas já temem que a idade emocional média dos nativos —que nunca foi superior à adolescência, mesmo em momentos de maior maturidade coletiva— esteja cedendo definitivamente a níveis de quinta série.

Incapazes de concordar sobre o sentido de palavras simples como “golpe” e “corrupção”, muitos longelandinos e longelandenses veem respectivamente um santo e um demônio onde há apenas a figura trágica de um homem público que teve tudo para tornar Longelândia uma terra decente, mas, como tantos outros, fracassou.

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