Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu

O governo dos piores

'Kakistocracy, termo raro que ex-diretor da CIA tornou viral, seria bem-vindo no Brasil 

Presidente dos EUA, Donald Trump, durante conferência na Florida
Presidente dos EUA, Donald Trump, durante conferência na Florida - Joe Raedle -18.abr.18/Getty Images/AFP

Caquistocracia: governo exercido pelos piores indivíduos de uma sociedade. A palavra já andou borboleteando por aí, mas não consta de nenhum dicionário de português que eu conheça. Talvez devesse constar.

Basta importar do inglês o vocábulo “kakistocracy” e submetê-lo na alfândega a uma simples adaptação de grafia. Velho de séculos, mas tendente ao desuso, ele viralizou sexta-feira passada (13), depois que o ex-diretor da CIA John O. Brennan o empregou num tuíte dirigido a Donald Trump.

“Sua caquistocracia está desmoronando depois de uma jornada lamentável”, escreveu Brennan, acrescentando que o governo do bufão topetudo é um “pesadelo” do qual o país acordará mais forte.

Isso bastou para que o mecanismo de busca online do dicionário “Merriam-Webster” registrasse no mesmo dia uma explosão de 13.700% na procura do termo raro. É cedo para falar em Palavra do Ano, mas dá vontade de usar um clichê do jornalismo esportivo: pintou a campeã!

Não que o substantivo “kakistocracy” estivesse hibernando desde 1644, quando, segundo o mesmo dicionário, fez sua estreia numa Inglaterra em guerra civil, num discurso de ataque aos inimigos do rei Carlos 1º. 

Ou melhor: adormecida talvez a palavra estivesse, mas imersa num daqueles sonos intranquilos dos quais volta e meia despertamos, sobressaltados, para logo dormir de novo. 

Nos últimos tempos, alguns articulistas políticos mais chegados à riqueza vocabular andaram brincando com a palavra —que tem um evidente lado cômico, para o qual contribui o estranhamento que provoca— para se referir ao governo de republicanos e democratas, ao gosto do freguês.

Ronald Reagan foi acusado de liderar uma “kakistocracy”. Barack Obama também. Pouca gente ligou. A etiqueta desonrosa só foi colar em Trump: a lei da adequação entre palavra e coisa é implacável.

O elemento de composição “-cracia”, vindo do grego, é uma bela peça de Lego para falantes dispostos a criar sob medida aquilo que a língua não oferece pronto. “Democracia” é o modelo, basta substituir o povo (“demos” em grego) da primeira metade da palavra pelo que se deseja comunicar.

No caso, a formação erudita introduziu outro elemento grego: “kakistos”, superlativo daquele “kakos” (mau, ruim) presente em “cacofonia”. Buscava-se um antônimo perfeito de “aristocracia” —etimologicamente, “governo dos melhores”.

Neologismos cultos ou vulgares forjados assim, sobretudo a partir do século 19, encontram destinos variados. Alguns se incorporam ao vocabulário trivial: burocracia, por exemplo. Outros são apenas bijuterias de ocasião, quase sempre de valor pejorativo, como “papelocracia” —uma burocracia elevada à enésima potência.

Se “caquistocracia” ainda não prosperou em nossa língua, temos a expressiva palavra “canalhocracia”, que o dicionarista português Cândido de Figueiredo registrou pela primeira vez em 1913.

Embora também combine com Trump e seu séquito de habitantes das sombras, canalhocracia não é um sinônimo perfeito de caquistocracia. Mas talvez seja uma palavra até mais útil num país, o nosso, em que a maior parte dos quadros políticos está, esteve, deveria estar ou ainda estará às voltas com a polícia.

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