Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Campanhas de guerra e paz

Saber de onde vêm as palavras é bom, mas situá-las na história é melhor

Neste momento em que se cruzam no noticiário e zunem sobre nossas cabeças ao menos dois sentidos principais de "campanha", o eleitoral e o esportivo, vale a pena falar um pouco da história sinuosa de uma palavra que atazana os puristas do sentido primordial.

Embora ande fora de moda nos círculos acadêmicos, a etimologia, estudo da origem das palavras, é um saber fascinante. No entanto, para levá-la além da curiosidade de almanaque é preciso driblar a ingenuidade de buscar no código genético dos vocábulos uma essência, um sentido fetichista atemporal.

Não é tão diferente do que ocorre com as pessoas. Mais do que a família, o berço, a fonte, é o percurso cumprido pela palavra desde seu nascimento —uma história que pode lhe torcer as inclinações originais até ela ficar irreconhecível— aquilo que importa no fim das contas.

Um exemplo: "rapaz" é um termo nascido no submundo do crime com o sentido de salteador, ladrão, mas tomou jeito na vida. Soube aproveitar as oportunidades que teve e poliu sua biografia a tal ponto que hoje ninguém se lembra de vinculá-lo à família em que se destacam o rapto e a rapina.

Algo semelhante ocorreu com "mulato". A associação com a palavra "mula", animal mestiço, lhe carimbou na testa uma origem indiscutivelmente racista. Contudo, séculos de história acabaram por promover a palavra a um lugar bem mais complexo —ao qual não falta a valorização de uma miscigenação cultural que seria, para muitos, a maior qualidade de um país... bem, de um país mulato.

O processo está sujeito a idas e vindas, claro. Pondo a história entre parênteses, o fundamentalismo etimológico pode a qualquer momento cobrar das palavras seu pecado original. É o que uma parte eloquente do movimento negro vem tentando fazer com "mulato", em campanha até certo ponto bem-sucedida —ainda que recente demais para permitir um prognóstico sobre seu resultado final.

Eis que —opa!— a campanha contra "mulato" nos faz retomar o fio da meada. O que terá em comum essa campanha com a de um político pela Presidência da República, a de uma seleção pelo hexacampeonato mundial de futebol, a de uma coletividade por mais doações de sangue ou menos acidentes de trânsito, a de um anunciante de TV pelo aumento das vendas de sua cerveja?

Todas essas campanhas se encaixam de alguma forma nas acepções da palavra que o dicionário "Houaiss" formula assim: "soma de esforços feitos para se atingir um determinado objetivo; conjunto de meios utilizados para consecução de um fim". E todas nasceram no campo de batalha.

No século 17, o francês viu surgir para campanha (no caso, "campagne") o sentido de "série de operações militares desencadeadas em um vasto teatro de guerra". Mais tarde, a expansão metafórica da ideia de luta continuada, com suas estratégias e sacrifícios, levou a campanha a nomear outras jornadas, em que a conquista de um objetivo difícil se dá sem o uso de armas de fogo e (quase sempre) sem derramamento de sangue.

O mais curioso, porém, é que os sentidos beligerantes hoje tão disseminados passavam muito longe do espírito da palavra latina "campania", onde essa história começou.

"Campania" era o mais bucólico dos vocábulos: significava campo aberto, planície, prado, campina (até hoje a palavra "campanha" conserva essa acepção em português). As tropas e seus canhões viriam bem mais tarde.

E por que vieram? Porque as grandes batalhas eram travadas nos campos, só por isso. Ao nos privar da história, o fundamentalismo etimológico muitas vezes nos priva também da compreensão.

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