Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu polícia

O país dos(as) pistolas

O que a gíria brasileira de maior sucesso dos últimos tempos diz sobre nós

Pistola
Giuseppe Porzani

No rádio do carro, na narração de Flamengo 1x0 Corinthians, o locutor e os comentaristas abusavam de uma rubro-negrice ululante, não necessariamente autêntica, torcendo bem mais do que eu me lembrava ser de bom tom nos velhos domingos cariocas embalados por Waldir Amaral, Jorge Curi e João Saldanha. Até aí, tudo bem.

Mais estranho era um outro abuso: a cada minuto em média, talvez menos, um dos radialistas disparava ao microfone com gosto evidente a palavra “pistola”. Não no sentido de arma de fogo que importamos do francês “pistole”, mas naquele que se tornou uma gíria brasileira de imenso sucesso: irritado, zangado, furioso.

Não estou exagerando: era um festival de pistolas. Porque fulano tinha ficado pistola com o companheiro que não lhe passara a bola, a torcida estava pistola com o jogador tal, o juiz ficou pistola e puxou o cartão, etc.

Aquela saraivada de pistolas não tinha a menor chance de soar natural. Ninguém repete tantas vezes uma palavra se isso não obedecer a um, digamos, projeto. Mas qual poderia ser a plataforma linguística daqueles sujeitos gritalhões?

A hipótese mais óbvia é que quisessem soar espertinhos, engraçados, “jovens”. Estamos falando daquela que é, indiscutivelmente, a gíria mais bem sucedida no país de um ano para cá, período em que começamos a ver “pistolas” sendo sacadas por tiozões quando querem parecer enturmados.

Nesse caso, aqueles pistoleiros radiofônicos seriam os arautos eloquentes de um fenômeno bastante comum: o da gíria que transborda do grupo que a criou e penetra, em versão que poderíamos chamar de butique, no vocabulário geral da sociedade, onde na maior parte dos casos está destinada a ser explorada e gasta até morrer.

A questão da pistolagem se encerraria aí se não me ocorresse uma segunda hipótese, quem sabe complementar: e se aqueles radialistas, com suas pistolas automáticas que não paravam de atirar, estivessem agindo como antenas, captando e dando voz ao sentimento mais vivo neste momento numa população que anda pistola, pistolíssima —e com razões de sobra para isso?

O vocabulário da raiva e da bile sempre foi inventivo à beça. Para cada furibundo, colérico, fulo ou apoplético de antigamente temos, em versões mais correntes de meio século para cá, um puto, um tiririca, um bravo ou um buzina.

O acréscimo de pistola a essa lista de sinônimos parece seguir a linha cômica que nos deu buzina, mas ao mesmo tempo acentua de forma alarmante a violência da reação: em vez de apenas fazer barulho como o buzina, gritando sua fúria, o pistola faz barulho e ainda manda bala.

Embora haja indícios de um DNA paulistano, provavelmente ligado ao submundo do crime e replicado em bordões do “Pânico na TV”, a origem exata dessa acepção de pistola é obscura, como costuma ocorrer em tais casos. É possível que não passe de coincidência a semelhança de som e sentido com o inglês “pissed-off”, por mais que nossa anglofilia militante recomende manter a tese na gaveta para eventual uso futuro.

Seja como for, parece razoável que uma gíria belicosa tome o país de assalto num momento tão desolador de nossa história, quando se constata um aumento de 23% nos homicídios de jovens entre 2006 e 2016 e quando um tosco candidato a presidente que cultua o chumbo grosso é líder nas pesquisas.

Em mais de um sentido, não há exagero algum em dizer que o Brasil é hoje o país dos(as) pistolas.

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