Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

O falante não se encontra

Cuidado com a pompa de quem vê mais valor no papo enrolado que no reto

Mulher mexe no celular na avenida Paulista, em SP - Danilo Verpa/Folhapress

— Alô, posso falar com o dr. Anísio? 
— Quem deseja?
— Boa pergunta. Meu desejo é tão profundo que quase se poderia dizer que me antecede.
— Entendo. O dr. Anísio não se encontra.
— Ah, coitado. Quando começou isso? 
— Vai saber. É assim desde que eu conheço ele. Não consegue se encontrar.
— Mas está fazendo terapia?
— Já tentou de tudo. Análise, macramê, guru indiano, trabalho voluntário, até cross-dressing.
— Caramba.
— Quer deixar recado?

Não se trata propriamente de erros. "Quem deseja?" virou um item valorizado do jargão telefônico, montado na elipse de "falar com ele". Já o verbo "encontrar-se", pronominal, encontra-se no dicionário com o sentido de "estar". Tudo certo, portanto. Exceto que...

Nesses dois tiques verbais de ampla circulação encontramos uma tendência da fala à qual ninguém está imune e que, por isso mesmo, convém manter sob rédea curta quando se busca certo apuro de expressão: a pompa vazia, balofa e boba de quem acredita ter mais valor o papo enfeitado que o simples, o enrolado que o reto, o dó de peito que o sussurro de João Gilberto.

"O número chamado encontra-se desligado ou fora da área de cobertura." "Ao entrar no elevador, certifique-se de que o mesmo encontra-se parado neste andar." Numa terra dividida entre a pirotecnia verbal dos bacharéis e a insegurança verbal dos precariamente letrados (faces da mesma moeda), essas formulações são consideradas mais belas que "O número chamado está desligado ou fora da área de cobertura" e "Ao entrar, certifique-se de que o elevador está parado neste andar".

Até aqui estamos lidando com noções subjetivas que os linguistas desprezam, mas que escritores empregam o tempo todo: elegância e deselegância, beleza e feiura. Acontece que o vício da pompa vazia não demora a arrastar o falante para os territórios mais pedregosos do erro propriamente dito.

Hipercorreção é um fenômeno linguístico curioso e disseminado feito mato na paisagem brasileira. Buscando ser mais correto que os mortais comuns, escrever com capricho, vestir sua língua com roupas domingueiras, é comum que o falante inseguro considere gramaticalmente erradas formas excelentes e, nos casos mais infelizes, termine por substituí-las por equívocos. Tudo em nome da balofice.

O exemplo mais inescapável dos últimos tempos é o do verbo "possuir" empregado indiscriminadamente no lugar de "ter", como se eles fossem intercambiáveis em todas as situações (não são). "Se possui alguma dúvida, fale conosco" e "Pelé possuía 17 anos quando jogou sua primeira Copa" são frases comicamente tortas porque ninguém possui algo tão frágil quanto uma dúvida ou tão provisório quanto uma idade. Incluindo a ideia de posse, esse verbo exige objetos diretos menos contingentes, como bens e atributos duradouros.

Em ascensão, é possível que a expressão "tratar-se de" logo supere "possuir" como o principal exemplo de pompa vazia do português brasileiro de hoje. Trata-se, como se sabe, de uma locução legítima quando empregada devidamente —como nesta frase.

No entanto, é comum vê-la acompanhada de equívocos que denunciam hipercorreção e balofice. A má ideia de fazê-la substituir o verbo "ser" é o mais frequente: "O filme trata-se de uma obra-prima". Não, "tratar-se de" não tem sujeito explícito, mas sempre indeterminado. "Tratam-se de bobagens, então?" E também não vai para o plural. Ah, língua complicada, a nossa? Mas quem mandou reinventar a roda?

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