É frequente o padrão de debate em que o acusado de uma ação reprovável, em vez de negar que a tenha cometido, acusa o acusador de fazer o mesmo. Às vezes parece que, mais que frequente, esse padrão se tornou nosso modo preferencial de pensar o mundo.
Trata-se de um argumento falacioso que trouxe do latim o nome de "tu quoque" ("você também"). De grande sucesso no mundo da política, embora não se restrinja a ele, é especialmente apreciado em momentos de forte polarização como o que vivemos no país de Bolsonaro contra Lula —ops, de Bolsonaro contra Haddad.
A acusação que Zé lança contra Chico não é negada nem admitida: passamos ao próximo item da pauta sem examiná-la. Mas ninguém tem a sensação de obra inconclusa porque Chico se põe à margem tanto da justificação de seus atos quanto da autocrítica por seus erros. Em vez disso, ataca: que moral tem Zé para acusá-lo?
Deixemos os nomes fictícios de lado. Alguém observa que o flerte de Bolsonaro e seu vice fardado com saídas autoritárias de almanaque —expresso em ideias como a duplicação do Supremo Tribunal Federal e a "Constituinte de notáveis"— lembra de modo preocupante a história recente da Venezuela.
Que absurdo, respondem os eleitores da extrema direita. Todo mundo sabe que é o PT o grande defensor do regime de Chávez e Maduro. E uma vez que a cumplicidade com o desastre venezuelano é realmente um dos grandes erros da esquerda brasileira, dá-se o assunto por encerrado: continuemos a tascar a democracia em paz.
Vale recuar mais no tempo. Bolsonaro foi desrespeitoso com as mulheres ao dizer que a deputada Maria do Rosário não merecia ser estuprada? E Ciro Gomes, que já declarou que o papel de sua mulher na campanha era dormir com ele, foi o quê?
Qualquer semelhança com a desculpa encontrada pelo PT quando a Lava Jato o apanhou canalizando dinheiro público para os cofres do partido —"o PSDB também roubou"— não é mera coincidência. É um padrão retórico que corre por cima e por baixo de ideologias.
Não temos um nome popular que nos ajude a reconhecer essa desconversa. Em inglês, seu apelido é "whataboutism", palavra recém-dicionarizada pelo Oxford. Intraduzível, é formada a partir de "what about" (algo como "o que me diz de...").
Assim ficou conhecida nos EUA uma das principais armas de defesa da propaganda soviética durante a Guerra Fria. Diante da acusação americana de que Moscou fuzilava dissidentes ou os internava em gulags, a réplica vinha em termos como "e vocês lincham negros".
O escritor Ben Yagoda escreveu sobre o tema há algumas semanas para o New York Times. Relatou diálogos como este: "Crítico hipotético de Trump: 'Ele trata as mulheres de forma abominável'. Defensor hipotético de Trump: 'E o que me diz de Bill Clinton?'". A polarização não anda menos acirrada por lá.
Embora seja útil para expor a hipocrisia do adversário, propiciando alívio ao acusado e diversão à audiência, o recurso do "você também" deixa os erros intactos. Pior: cria em observadores não alinhados uma sensação difusa de descrédito e decadência moral generalizada. Convém ficar de olho nele.
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