Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu Eleições 2018

Palavras numa hora dessas?

Eufemismo covarde, o adjetivo polêmico ilustra nossa crise político-cognitiva

Ter como tema a linguagem, as palavras, oferece alguns riscos. Um deles fica muito claro em momentos de grande crispação cívica como o que vivemos hoje, às vésperas de uma eleição que promete dividir a história do país em antes e depois de 2018.

Exagero? Talvez. O fato é que, mais do que qualquer outra campanha eleitoral que eu tenha vivido (não foram tantas assim, pois cresci debaixo de ditadura), esta parece feita sob medida para provocar a pergunta do título ali de cima: palavras numa hora dessas, sério?

O espanto se baseia numa ideia que parece sólida: existem as palavras e existem as coisas que elas nomeiam, e as coisas são muito mais importantes do que as palavras. Verdade, claro, mas o mundo é um pouquinho mais complicado do que isso.

À primeira vista, comprova-se o argumento com uma experiência simplória. Basta botar diante de uma pessoa faminta um prato de sopa de legumes com carne e uma cartolina em que alguém escreveu com caneta hidrocor: “Sopa de legumes com carne”. O que tem mais valor para a vida da pessoa?

À segunda vista, a trama pode se adensar. Digamos que na cartolina ao lado do prato fumegante esteja escrito o seguinte: “Sopa de legumes com carne e arsênico”. Nesse caso o valor maior para a vida da pessoa faminta, supondo-se que saiba ler, é o da cartolina que a alerta sobre o veneno.

Embora o senso comum veja a reflexão sobre a linguagem como uma preocupação secundária, um luxo, quando não uma frivolidade, ela se impõe pelo poder que têm as palavras de formar ou deformar nossa visão das coisas. Toda crise política é também uma crise cognitiva.

Voltemos à pergunta do título para desdobrá-la. A democracia brasileira costeando o abismo, a própria governabilidade do país parecendo comprometida em qualquer dos cenários à mão —e você me vem falar de palavras?

Sempre. Uma sociedade que não zela pelo fio da linguagem, que não dispõe de mecanismos de atualização permanente da correspondência entre palavra e coisa, mata seus famintos com sopa envenenada. Se essa sociedade é maciçamente iletrada e trata a educação com desprezo, como a brasileira, o risco cresce.

O adjetivo “polêmico” é um exemplo de vocábulo que, na moita, se bandeou para o time do arsênico. Empregado como curinga no discurso jornalístico (devo ter contribuído para isso, não vou tirar o corpo fora), virou um eufemismo covarde e perigoso.

Isso ocorreu quando, em nome de uma certa imparcialidade, convencionamos chamar de “polêmica” uma declaração como esta: “Através do voto você não vai mudar nada neste país. Só vai mudar, infelizmente, quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando por FHC”.

O léxico da língua portuguesa dispõe de uma fartura de adjetivos mais adequados do que “polêmico” para o que o deputado Jair Bolsonaro deixou gravado num programa de TV de 1999, hoje disponível no YouTube: para não entrar no Código Penal, “truculento”, “sanguinário” e “tresloucado” são só os primeiros da fila.

Sim, é claro que o tempo passou e que hoje o líder da corrida presidencial já não se expressa em termos tão ferozes. Não se trata aqui de congelar o tempo, mas de apontar o número de anos em que, declaração “polêmica” atrás de declaração “polêmica”, nossa linguagem contribuiu para dar um verniz de normalidade àquilo que em sociedades civilizadas tem outro nome.

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