Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu Tragédia em Brumadinho

Com a lama na alma

Como uma velha metáfora do atraso brasileiro se fez, mais que literal, letal

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Metáforas são um perigo. Quando rompem suas barragens de figuração e jorram pelas encostas do sentido literal, fenômeno menos raro do que parece, têm grande poder de destruição física.

Veja-se o proverbial "mar de lama". Na crise que conduziu ao suicídio de Getúlio Vargas em 1954, a expressão brandida pela UDN no parlamento e na imprensa virou um dos mais poderosos bordões da política brasileira em todos os tempos. 

É a senha definitiva da denúncia —meio justificada, meio histérica— de uma corrupção supostamente universal e sem freios instalada no seio do populismo de esquerda, arma de mobilização eleitoral que o populismo de direita não inventou agora. 

Curiosamente, a paternidade de "mar de lama" é atribuída ao próprio Vargas, que com imagem tão gráfica teria expressado a um coronel da Aeronáutica sua decepção com as jogadas corruptas de Gregório Fortunato, chefe de sua guarda pessoal. Mas essa é outra história.

"Mar de lama" virou chavão, metáfora morta, mas em sua origem era uma imagem potente —ou não teria sido abraçada por Carlos Lacerda, um dos mais brilhantes oradores de nossa história parlamentar (essa parte nosso populismo de direita desaprendeu), em sua feroz campanha contra Vargas.

É claro que, entre aquele Brasil dos anos 1950, que mal engatinhava esperançosamente na modernidade, e o de agora, mistura grotesca e já exausta de arcaico e pós-moderno, o mar de lama do Catete ganhou um ar até bucólico de poça d'água, mas não é disso que quero falar aqui. O que me interessa é a história de uma boa metáfora.

Na tradição rural —vastíssima nos sentidos geográfico e histórico— em que o Brasil nasceu e foi criado, a lama simboliza o atraso. A urbanização é uma guerra contra ela. Carros de boi atolavam na lama, vacas iam para o brejo. "É o carro enguiçado/ É a lama, é a lama", cantou Tom Jobim em "Águas de março".

Além do atraso, coube à lama simbolizar a pobreza e a sujeira física e moral a ela associada: metiam-se os pés cascudos no barro, emporcalhavam-se os tratadores de porcos em chiqueiros, enlameavam-se reputações, chafurdava-se em charcos. É "a moral toda enterrada na lama" cantada por Clara Nunes.

Pode parecer que, definitivamente suja, a lama tem o mesmo conjunto de sentidos em qualquer cultura, mas não é assim. No repertório de diversos povos da antiguidade, a principal força simbólica da pasta de terra e água é positiva à beça: liga-se à criação da vida.

Na mitologia de gregos, sumérios, egípcios, chineses, hindus, iorubás e, claro, no próprio "Gênese", a humanidade foi moldada por mãos divinas tendo por matéria-prima algum tipo de argila. O que pode estar mais perto da verdade do que se imagina.

O oceano goza de boa reputação científica como provável criadouro da vida na Terra, mas nunca abafou por completo a teoria do "laguinho morno" —cheio de lama, óbvio— que Charles Darwin propôs.

Com Mariana e, em versão incomparavelmente mais letal e absurda, Brumadinho, a velha lama brasileira, agora acrescida de toneladas de metais venenosos e desprezo, não se limita a romper as barragens do sentido figurado: soterra qualquer ligação com a vida que pudesse estar enterrada no barro. 

Atraso, sujeira física e moral, tudo isso já parece pouco. Nossa lama simboliza a morte, ponto. Estamos enlameados até a alma. O vizinho de coluna Vinicius Torres Freire tem razão: o Brasil está apodrecendo fisicamente. 

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