Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Uma breve história do rico vocabulário do mau-caratismo

Infame congregação dos canalhas, salafrários e pulhas tem membros antigos

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A palavra “canalha” tem raízes profundas. Seu primeiro registro data de 1546, tempo de consolidação da versão moderna do português, quando um jovem Luís de Camões ainda sonhava com aventuras no mar.

A etimologia ensina que fomos buscar o sonoro termo no italiano “canaglia”, a princípio um coletivo de cães usado metaforicamente como “conjunto de pessoas desprezíveis” e, em seguida, aplicado a uma pessoa só. Até hoje a palavra conserva esse duplo sentido individual e coletivo —neste caso, menos comum, sempre no feminino.

Talvez canalha seja o vocábulo mais bem-sucedido do clube, mas a infame congregação dos salafrários, pulhas e patifes tem membros mais antigos. O século 13 nos legou duas palavrinhas semelhantes: o vil e o vilão. 

O ator Heath Ledger interpreta o vilão Coringa em cena do filme "Batman: O Cavaleiro das Trevas"
O ator Heath Ledger interpreta o vilão Coringa em cena do filme "Batman: O Cavaleiro das Trevas" - Divulgação

Uma parece o aumentativo da outra, mas a parecença engana. Vil saiu do latim clássico “vilis”, adjetivo para aquilo que era barato, de pouco valor. O vilão teve que esperar a transformação, operada mais tarde no latim vulgar, do nome próprio Villanus num substantivo comum que queria dizer “habitante de uma vila, de uma casa de campo rústica”.

Foi assim que o vil e o vilão, partindo de pontos distintos, acabaram por se encontrar na imemorial associação entre pobreza e deficiência moral. A mesma que ficou cristalizada de forma transparente e até didática numa palavra como “ignóbil”, um sinônimo de hediondo e repugnante que derivou do oposto do latim “nobilis” —isto é, nobre, fidalgo.

A associação pode ser ignóbil, mas se manteve produtiva. A origem provável da palavra biltre (do início do século 19), com sua aura hoje meio cômica de xingamento antiquado, é o francês “bélître” no sentido de mendigo.

Até o safado, que disputa com o canalha o segredo da eterna juventude entre os principais nomeadores do mau-caratismo, revela sua origem social humilde. É o particípio do verbo “safar” no sentido hoje pouco difundido de gastar pelo uso frequente, inutilizar —no caso, valendo para a roupa velha o mesmo que para a dignidade do cidadão.  

A história da humanidade, como se sabe, passa longe de confirmar o automatismo dessa relação entre pobreza e desonestidade que a história das palavras sugere. Nobres ignóbeis são figurinhas tão fáceis quanto biltres com salário gordo, auxílio-moradia e gravata Ermenegildo Zegna.

Isso torna especialmente interessante aquela seção do glossário da sem-vergonhice em que as palavras, tendo origem nebulosa, não precisam brigar com seu DNA socialmente intolerante para dar conta das epidemias de escrotidão que acometem o topo da pirâmide social. 

Cafajeste, por exemplo, ninguém sabe de onde vem. Também nasceu para nomear o indivíduo grosseiro e armador de baixa condição social, mas os estudiosos carimbam o termo —juntamente com pilantra, pelintra, patife e calhorda— como de origem obscura ou de “formação expressiva”, quando o som pula na frente e traz o sentido a reboque. Ou seja: mesmo à luz da etimologia, pode ser usado sem contraindicações.

Ainda não falamos de outros membros do clube como escroto, salafrário, tratante, sacana, bandalho, velhaco, pústula, abjeto, pangarave. O quadro social é rico, mas aceitam-se novos associados. A língua só para quando morre.

Por falar em língua viva: passada essa maluquice, aposto na permanência de “felpudo” com o sentido (irônico, vá lá) de polpudo. Poesia pura. 

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