Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Horrípilo e quizilento

Repetição tira a força da indignação moral com disparates de Bolsonaro

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As recentes declarações em que Jair Bolsonaro redefine o sentido de ultraje contribuem para a aposentadoria dos covardes adjetivos "controverso" e "polêmico", bem denunciados por Antonio Prata no domingo (28). Contudo, não é fácil a vida dos escribas. 

Palavras como desumano, insensível, sórdido, asqueroso, repulsivo, cruel, nojento, grotesco e torpe têm sido usadas na imprensa e nas redes, inclusive por uma parcela dos que se alinham (se alinhavam?) com o presidente.

Deixemos de lado as ponderações sobre até que ponto os sentimentos de indignação, horror e perplexidade traduzidos por essas palavras estão nos planos de Bolsonaro.

Se ele quer atiçar as paixões do núcleo mais ultradireitista e antidemocrático de seus apoiadores, ainda que ao preço de afastar a turma que não se enquadra no figurino alucinado, cabe a analistas políticos —ou psiquiátricos— especular sobre suas motivações, objetivos e chances de sucesso.

O próprio Bolsonaro estimula a interpretação de que ao metralhar disparates está só expressando seu eu. Invoca assim a valorização pervertida da "autenticidade" como valor máximo, um dos princípios que norteiam as redes sociais e seu culto ao amadorismo tosco.

"Sou assim mesmo, não tem estratégia", declarou ao jornal O Globo na terça (30). "Se eu estivesse preocupado com 2022, não daria essas declarações." Isso pode fazer sentido, mas não é o atormentado mundo interior do presidente o tema desta coluna.

Interessa aqui a capacidade que nossas palavras têm —ou não têm— de dar conta de uma realidade desafiadora. Como as instituições políticas, a linguagem também pode perder potência diante da erosão provocada por ataques repetidos, sistemáticos, maquinais.

Funciona assim: embora os adjetivos listados ali em cima possam ser excelentes escolhas vocabulares no contexto, trata-se de palavras estridentes e extremas que não se prestam bem à repetição. 

Toda vez que uma declaração de Bolsonaro é chamada de asquerosa, repulsiva, desumana ou sórdida, podemos ter certeza de que sua próxima declaração soará um pouco menos asquerosa, repulsiva, desumana e sórdida.

Isso ocorre por uma fadiga semântica que é exclusiva do reino das palavras, sem relação com nosso grau de indignação íntima diante da realidade à qual elas se referem. 

Digamos que fosse possível a um falante bater seu próprio recorde de declarações escalafobéticas dia após dia, num crescendo infernal e sustentável por tempo indeterminado. 

À medida que esse sujeito hipotético fosse subindo na escala da infâmia, as palavras atiradas contra ele pelas pessoas civilizadas e sãs que o rodeiam se tornariam cada vez mais débeis, até caírem no chão como mariposas úmidas. 

Quando o cara chegasse, digamos, a alardear as delícias da degustação de bebês humanos assados em fogo lento com batatas, o poder de comunicação de um adjetivo como "atroz" seria zero.

Se repetidas demais, palavras estridentes e extremas evocam histeria e perdem credibilidade. Sua estridência deve ser poupada para a raridade dos momentos extremos. Quando estes se tornam banais, elas perdem. 

O que fazer então? Bom, trata-se de um caso típico de problema do reino das palavras que não tem solução no reino das palavras.

Mesmo assim, não custa muito caçar uns sinônimos para evitar a repetição e retardar o esgotamento da linguagem, enquanto a história não dá um passo à frente. Nauseoso, alguém? Horrípilo? Quizilento?

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