Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Nós, os latinos

Termo familiar e estranho ajuda a ler cena antológica de 'Bacurau'

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Numa das melhores cenas de "Bacurau", os dois brasileiros —ele de São Paulo, ela do Rio— que prestam serviços sujos para os psicopatas gringos sugerem ser brancos como eles.

Tomam pelas fuças uma rajada de risos de deboche e especulações racistas sobre a negritude da dupla, que é indiscutivelmente branca pelos padrões nacionais.

De repente, diante do ar humilhado do paulista, a americana mais bonitinha faz um elogio condescendente aos atrativos sexuais daquele "Latino". É dessa palavra que quero falar.

Conhecer melhor um termo ao mesmo tempo familiar e estranho ajuda a ler uma cena rica em camadas de racismo, autoengano, poder e subserviência. 

"Latino" (com a inicial maiúscula que o inglês confere a nacionalidades e línguas) é uma palavra que o inglês americano foi buscar nos anos 1940 na forma reduzida do espanhol "latinoamericano".

Importado para atender a uma necessidade do inglês, o termo logo seria devolvido com novas conotações aos latino-americanos, na esteira da influência cultural do idioma de Steve Bannon. 

A palavra tem como primeira acepção "americano de origem latino-americana". Além de compatriotas morenos, designa os habitantes dos países de língua espanhola das três Américas (não da Espanha, normalmente).

Isso mesmo: de língua espanhola. É assim que o vocábulo consta nos dicionários de inglês, como sinônimo de "Hispanic". Surge aí uma primeira questão.

Será que nós, brasileiros, que não somos hispano-americanos, estamos nesse pacote? E quando se trata de um brasileiro branquelo, filho por exemplo de alemães? 

Embora o racismo comporte matizes --inclusive os que transcendem a cor da pele, regidos por fatores socioeconômicos--, o fato é que na prática nós, luso-americanos, estamos sim no círculo semântico de "Latino". 

Se paira alguma sombra sobre isso nos dicionários, ela se deve ao fato de os brasileiros não serem nos EUA (ainda?) uma força demográfica sequer remotamente comparável à dos hispânicos. Trata-se mais de invisibilidade que de distinção.

Latino-americanos somos, por mais que negar essa irmandade seja uma marca do racismo brasileiro. E reconheça-se que, para o cidadão americano branco médio, a ideia de uma distinção relevante entre subgrupos de latino- americanos soa até esotérica.

Isso pode traduzir preconceito, mas faz sentido histórico. Não se trata de lembrar que a palavra latino-americano, em acepção secundaríssima, pode abarcar franceses do Canadá e ítalo-americanos de Chicago ou Nova York --todos descendentes do Império Romano, afinal. 

O Brasil entra nessa dança, mas não porque o sentido dominante de latino-americano --e o de sua forma abreviada "Latino"-- tenha algo a ver com uma teórica comunidade histórico-cultural demarcada pelas línguas neolatinas.

País latino-americano é aquele cuja população, com maior ou menor miscigenação, se compõe de descendentes de povos nativos das Américas e de descendentes de colonizadores ibéricos, com descendentes de africanos escravizados compondo na maior parte deles um terceiro e importante contingente. 

Como estamos falando de uma palavra do vocabulário racial, aquele usado para perfilar étnica e culturalmente os grupos humanos, no fundo é só disso que se trata. 

Latinos não são brancos, embora possam ser americanos. Essa ambiguidade é o máximo de acolhimento que o patético casal de sulistas de "Bacurau" vai conseguir saborear pelo resto de sua vida.

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