Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Pornografias

Beijo gay de HQ não é obsceno, mas pistola automática em hospital é

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“Pornografia é uma palavra que muita gente não entende direito. Beijar alguém do mesmo sexo não é pornografia. Exibir pistola automática em hospital é”, dizia um tuíte que publiquei na terça (10).

Por enunciar de forma sintética uma verdade que não é evidente para todos, o post merece desdobramento.

Primeiro é preciso recuar até o último e histórico fim de semana na Bienal do Livro do Rio.

Como se sabe, o prefeito Marcelo Crivella, com a ajuda da Justiça, armou uma tempestade oportunista no copo d’água de uma história em quadrinhos e acabou derrotado.

Muito já se falou do desespero de um péssimo político que se vê prestes a descer pelo ralo nas eleições e apela para o populismo descarado. No caso, invoca o pânico moral provocado em parte da população pela ideia de “pornografia”.

Que palavra é essa? Formada a partir do grego “porné” (prostituta), é jovem: nasceu no século 19 com a primeira acepção, em francês, de “estudo sobre a prostituição”. 

O sentido que vingou no puritanismo da Era Vitoriana, porém, foi o de arte erótica em geral e pintura licenciosa da antiguidade em particular.

Mulher distribui um dos 14.000 livros de temas LGBT comprados pelo youtuber brasileiro Felipe Neto e distribuídos livremente na feira em protesto ao prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, pela censura de uma revista em quadrinhos da Marvel
Mulher entrega um dos 14.000 livros de temas LGBT comprados pelo youtuber brasileiro Felipe Neto e distribuídos livremente na feira em protesto ao prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, pela censura de uma revista em quadrinhos da Marvel - 08.09.2019 - Fernando Souza/AFP

A palavra evoluiu daí para uma acepção de moralismo difuso: “reprodução grosseira e não artística de cenas sexuais que buscam excitar os baixos instintos do público”.

O pornográfico reivindicou parte da região até então pertencente ao erótico, território vasto demarcado por uma palavra que vinha de tempos remotos —do grego “erotikós”— e que incluía obras, tanto cabeludas quanto refinadas, nas quais eram retratados “amor, paixão ou desejo intenso”.

Desde então, o erótico vem sendo chamado cada vez mais a nomear apenas as terras altas da arte sensual. Os países baixos onde o pau come pertencem à pornografia.

O texto do Estatuto da Criança e do Adolescente favorece manobras de má-fé ao determinar no artigo 78 que seja vendido em embalagem lacrada todo “material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes”. 

A imprecisão de uma palavra como “impróprio” é imprópria ao texto de uma lei, e nesse escurinho se passou tudo: Crivella tramou inconstitucionalidades e um desembargador chegou a lhe dar razão, 
antes de ser corrigido pelo STF.

Logo adiante o ECA acende uma luz: determina que “as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca”.

Pornográficas, pois é. Eis a palavra-chave que poderia dar fundamento à cruzada do pastor-prefeito. Só que o livro em questão, da série “Vingadores”, da Marvel, é zero pornográfico ou mesmo erótico.

A imagem de duas pessoas vestidas se beijando tem outro papel dramático, aliás banal e quase onipresente na ficção dos últimos séculos: o romântico.

Bingo! Para a parcela homofóbica da população, cujo obscurantismo Crivella ordenha de modo obsceno, romantismo gay é necessariamente erótico; e sendo gay e erótico, só pode ser pornográfico. 

É o elemento “gay” que vicia o juízo, transformando o que seria corriqueiro entre homem e mulher num perigo do qual devemos proteger nossos filhos com embalagens lacradas. 

O nome disso é homofobia. Quanto a posar no hospital ao lado do pai convalescente com uma pistola automática bem ostensiva na cintura, como fez o deputado Eduardo Bolsonaro, por que isso seria pornográfico? Porque a palavra evoluiu e hoje, mais do que imagens de nudez e atos sexuais, nomeia por analogia a exploração despudorada e crua de outros baixos instintos.

O presidente Jair Bolsonaro com o filho Eduardo Bolsonaro após cirurgia
O presidente Jair Bolsonaro com o filho Eduardo Bolsonaro, que carrega uma arma na cintura, no hospital após cirurgia - 09.09.2019 - Reprodução

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