Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

A atriz contra o bufão

Como Fernanda Montenegro virou símbolo da resistência às trevas

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Tem um sentido dramático profundo a transformação de Fernanda Montenegro numa flamejante catalisadora da revolta contra o obscurantismo do governo Bolsonaro.

O fenômeno ficou evidente no Theatro Municipal de São Paulo domingo passado (6), quando uma leitura de trechos de seu livro de memórias foi recebida com uma espécie de frenesi cívico.

As correntes elétricas que corriam pela audiência de mil pessoas tinham a mesma voltagem das que agitaram multidão bem maior no comício das Diretas na Candelária, no Rio, em 1984.

Exagero? Eu estava presente nas duas ocasiões e acho que não. Uma diferença óbvia, entre tantas, é que a força de Fernanda não vem de mensagens explicitamente políticas, por mais que ela tenha condenado a reeleição como uma das causas de nossas aflições.

 
A atriz Fernanda Montenegro, que lançou o livro de memórias “Prólogo, Ato, Epílogo”, da editora Cia das Letras
A atriz Fernanda Montenegro, que lançou o livro de memórias “Prólogo, Ato, Epílogo”, da editora Cia das Letras - 18.set.2019 - Zô Guimarães/Folhapress

Para entender o fenômeno da transformação da maior atriz brasileira em farol (como disse Fernanda Torres na antológica crônica “Mãe”, publicada na Folha no mesmo dia) é preciso rebobinar a história.

“Prólogo, Ato, Epílogo” (Companhia das Letras), o belo livro de Fernanda Montenegro, tem entre suas qualidades a de ser um depoimento lúcido sobre a história político-cultural brasileira de meados do século 20 até hoje.

No entanto, seu fio condutor não é o de nossas acidentadas disputas de poder, que em geral só interferem para atrapalhar, e sim o da apaixonada, exclusiva, inegociável dedicação de Fernanda ao ofício de atriz, profissão “insólita, constrangedora, marginal”. 

Nesse sentido, os aplausos febris de domingo no Municipal foram uma súmula dos 70 anos de aplausos que ela colheu ao longo de uma trajetória que emociona pelo brilho, mas também pela coerência: um povo pagando tributo a uma artista imensa, só isso.

Mas não era só isso. Nada nunca é uma coisa só, mesmo em condições normais de temperatura e pressão. E calhou de o livro que marca os 90 anos da atriz chegar ao mercado num momento de rara anormalidade.

Quem não enterrou a cabeça na areia sabe que a democracia brasileira é hoje sitiada por ameaças autoritárias oficiais em diversas frentes, entre elas a da liberdade de expressão. A censura não tem a coragem de assumir seu nome, mas anda desfilando toda exibida.

Somem-se a esse quadro detalhes circunstanciais —a antológica capa da revista Quatro cinco um em que Fernanda posa de bruxa prestes a ser queimada, a ofensa sórdida que lhe dirigiu um burocrata da Funarte— e está pronto o texto da peça ora em cartaz.

Nela, uma artista situada além da consagração e que nunca se meteu em política partidária vira porta-voz de um sentimento urgente de indignação e resistência que os trâmites político-partidários, grogues, não conseguem canalizar.

Neste momento de confusão e vista embaçada, dona Fernanda se tornou a prova mais incontestável de que o Brasil é melhor, muito melhor do que essa tenebrosa república fundamentalista cristã em que tentam transformá-lo.

O fato de tal garantia vir de uma rainha dos palcos faz sentido. Como quase todos os populistas de direita desde o “buffone” Benito Mussolini, Jair Bolsonaro é um tipo teatral, um histrião, primo do Coringa de Joaquin Phoenix.

As raízes do palhaço estão fincadas na Antiguidade, mas as do teatro como um todo também estão, a nos lembrar que é na multiplicidade de tipos e efeitos dominados por Fernanda Montenegro —cômicos, trágicos, dramáticos, inspiradores— que o palco faz plena justiça à vida.

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