Há quem acredite que, por escrever sobre a língua e ter mantido por muitos anos consultórios gramaticais na imprensa, eu tenha prazer em corrigir o próximo. Na verdade, não gosto nem um pouco.
Acho que a pessoa só deve botar reparo gramatical na língua dos outros, e mesmo assim com pudor, quando lhe pedirem ou quando tiver mandato profissional (ou afetivo, vá lá) para tanto.
Vejo apenas duas exceções. A primeira envolve o interesse público, quando o erro é sintoma de um mal maior e tem efeito multiplicador devido ao poder de quem o comete.
Para ficar num exemplo absurdo, vamos imaginar que o ministro da Educação fosse um inepto capaz de escrever gato com jota. Nesse caso, denunciar seus erros seria obrigatório.
A outra exceção é o combate ao sabichonismo. Tanto quanto a autoridade ignorante, o sabichão deve ser corrigido sempre que vier a público dedurar os erros fictícios que fabrica em sua usina de fake news linguísticas.
Para quem não o conhece, o sabichão é aquele patrulheiro que adora corrigir até o que não está errado.
Em troca do prazer de comprar com notas falsas a vitória sobre o interlocutor desavisado, espalha confusão.
Bom, não é como se, em matéria de língua, precisasse de mais confusão um país em que milhões de letrados matam a crase na canela, confere?
O sabichonismo é uma doença oportunista que debilita mais um pouco nossa já fracote autoestima linguística.
Sendo assim, corrigir um sabichão nada mais é do que usar contra ele, carregada de argumentos sólidos, a arma que ele usa contra todo mundo com munição nasal. Pura legítima defesa.
Combater o sabichonismo tem o mérito adicional de contribuir para a guerra maior contra a desinformação, praga antiga que ganhou proporções monstruosas no mundo das redes sociais.
Por exemplo, a tese cascateira de que a forma certa do ditado é “Quem tem boca vaia Roma”, em referência aos apupos que os súditos reservariam aos césares, é uma prima mais velha da mamadeira de piroca.
Nem uma nem outra jamais tiveram fumaça de sustentação histórica ou mesmo de verossimilhança. Pensando bem, são ridículas. E convenceram multidões.
Que importa que “Quem tem boca vai a Roma” tenha, além de um sentido sensato, séculos de abonação literária e equivalentes perfeitos em outras línguas? O sabichão age como se o mundo do conhecimento nascesse com ele.
Da mesma forma, o anátema que se abateu há 20 anos sobre a ancestral expressão “risco de vida”, uma das sabichonices mais bem-sucedidas da língua portuguesa, compartilha um trecho de seu código genético com o terraplanismo.
Fatos? A história da língua, bibliotecas inteiras, usos que deitam raízes por gerações? Se tudo isso pode ser derrubado rapidinho por um sabichão e sua “lógica” infantil, não é exagero dizer que estamos em apuros.
É por isso que sabichões eu corrijo com gosto. Por exemplo: está certíssima a expressão “dois pesos e duas medidas”, que vem sendo atacada sem dó.
De origem bíblica, ela existe em diversas línguas e se refere a dois pesos (kg) e duas medidas (m), intercambiáveis conforme estejam diante do comerciante desonesto o fiscal ou o cliente —trapaças de quem rouba na farinha e no tecido.
Se a versão fake “um peso e duas medidas” parece fazer mais sentido, lamento, acontece. Sabichões são ardilosos e enganam muita gente boa. Como zumbis, se alimentam de cérebros e tentam transformar suas vítimas em novos sabichões. Cuidado com eles.
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