Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Que coisa mais jeca!

Do capiau de Lobato ao cafona urbano de hoje, palavra mudou com o país

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É bem raro que um personagem literário tenha tanta projeção cultural que seu nome acabe por virar substantivo comum de ampla circulação, verbete em todos os dicionários.

Aconteceu com o Jeca Tatu, criado há pouco mais de cem anos pelo escritor paulista Monteiro Lobato (1882-1948).

O Houaiss define assim o brasileirismo jeca-tatu, substantivo masculino: “habitante do interior brasileiro, especialmente da região centro-sul, de hábitos rudimentares, morador da zona rural”. Ou seja, jeca-tatu é sinônimo de caipira, matuto, equivalência que o dicionário também registra. 

Curiosamente, é só no verbete jeca, forma reduzida de jeca-tatu, que o lexicógrafo aponta o escancarado caráter pejorativo da palavra. O termo caipira pode ser depreciativo, mas também aparece em contextos neutros e até de valorização da cultura rural. Jeca não: é ofensivo sempre.

O Jeca Tatu de Amácio Mazzaropi. O personagem foi criado por Monteiro Lobato
O Jeca Tatu de Amácio Mazzaropi. O personagem foi criado por Monteiro Lobato - 30.mar.2012 - Divulgação

Mesmo quando o ator e cineasta Amácio Mazzaropi (1912-1981) fez dele um herói simpático e de grande sucesso, o riso que sua comédia buscava era baseado na superioridade do espectador sobre aquele capiau ridiculamente simplório, que envergonhava os próprios filhos, ainda que fosse honesto e de bom coração.

A negatividade vem de berço. Quando lançou o personagem do Jeca Tatu em 1914, em artigo para O Estado de S. Paulo intitulado “Uma velha praga”, Lobato o apresentava como síntese dos defeitos que, na sua experiência de fazendeiro cheio de sonhos frustrados de modernização, condenavam o matuto brasileiro —e o país com ele— ao atraso eterno.

Preguiçoso, ignorante, abúlico, triste, nessa primeira encarnação o Jeca (corruptela de Zeca) é uma espécie de aberração responsável por todas as suas próprias desgraças aos olhos urbanos do escritor elitista. Só que o autor nunca parou de retocar o personagem.

Em pouco tempo tinha transformado o Jeca numa vítima da incompetência do Estado, que lhe negava saneamento, remédios e educação.

O personagem começou a ganhar contornos construtivos. Nessa fase o astuto Lobato chegou a lhe arranjar um emprego de garoto-propaganda do Biotônico Fontoura, elixir vendido como capaz de curar os jecas de sua jequice. 

No fim da vida do escritor, uma intervenção mais claramente política mudou tanto o caipira, agora retratado como explorado pelos donos da terra, que ele precisou mudar de nome.

Assim surgiu o personagem Zé Brasil, camponês dotado de consciência de classe. De modo significativo, não fez um milésimo do sucesso do Jeca.

Ocorre que a criatura já havia declarado sua independência do criador. Morto Lobato, novas transformações estavam por vir tanto para o Jeca, o personagem, quanto para jeca, a palavra.

O já citado Mazzaropi se encarregou da primeira, mas é a outra que interessa mais de perto à coluna.

Se a incrível inserção cultural alcançada pelo caipira de Lobato só pode ser entendida no contexto de um país que, na primeira metade do século passado, ainda era maciçamente rural, o Brasil de urbanização velocíssima das décadas seguintes reservou novos papéis para o termo jeca.

Hoje é mais comum vê-lo usado como adjetivo para qualificar o “que revela mau gosto, falta de refinamento; cafona, ridículo” (Houaiss).

Abusar de palavras em inglês é jeca. Humilhar porteiros e garçons é jeca demais. Usar faixa presidencial em solenidades que não a exigem, haja jequice! Não há dúvida de que vivemos o momento mais jeca de nossa história.

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