Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Facas de dois legumes

A uva do Queiroz, o pé na jaca e o poder criativo dos mal-entendidos

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A faca de dois legumes é o símbolo mais zoado de um tipo de mal-entendido comum no mundo das locuções e frases feitas. Nem sempre as novas expressões assim produzidas têm efeito cômico.

A velha “faca de dois gumes” que herdamos dos nossos tataravós, símbolo de duplicidade, de repente perde o fio, tentando em vão cortar o duro hermetismo que a palavra gume representa para tantos falantes de hoje.

Ora, substituir uma palavra estranha, vazia, por uma semelhante que faça ou pareça fazer sentido é uma operação linguística comum, criativa —e muitas vezes inestimável.

Como facas se dão bem com leguminosas, o nó empedrado da incompreensão é removido para dar lugar a um suculento sentido que, além de tudo, é eufônico. Dois. Legumes.

 
O motorista Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro
O motorista Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro - Reprodução/SBT

Se a expressão é tão boa, por que virou piada? Para começar, porque gume pode até ser uma palavra difícil para a maioria, mas ainda é suficientemente conhecida dos letrados para funcionar como um desses marcadores de distinção que a sociabilidade brasileira tanto preza.

Além disso, os legumes deturpam o sentido da expressão original, que assinala os dois lados de algo, um positivo e um negativo. No fim, temos uma expressão pronta para ser ridicularizada, bode expiatório da culpa de todas as variantes não cultas. 

Nesse sentido, igual à uva do Queiroz. “Salariozinho bom desse aí para a gente que é pai de família cai como uma uva”, recita o (ex?) agregado e faz-tudo do clã Bolsonaro no áudio em que aparece negociando empregos no Congresso em junho passado, quando já era o mais inencontrável dos homens.

Na troca da luva pela uva, mais uma vez a falta de familiaridade com a tradição impulsiona uma guinada rumo aos hortifrutigranjeiros. Dessa vez, porém, o problema não está na luva, mas no verbo cair.

Cair tem se tornado cada vez mais apenas desabar, ir ao chão, aquilo que Neymar ficou famoso por fazer. Cair no sentido de assentar ou vestir vai virando uma palavra poética, pouco prática.

E não é um fato que uvas despencam? Claro que sim, a gravidade vale para todos, ainda que, na hora de cair do pé, o fruto da videira fique a anos-luz da proficiência de mangas e jambos.

De todo modo, não se trata de justificar o tombo linguístico do Queiroz, membro de uma turma que tem tanta intimidade com a língua portuguesa quanto eu com fuzis israelenses.

A ideia é destacar um fato curioso: em vez de serem ridicularizadas, certas operações linguísticas muito parecidas com essas caem no gosto dos falantes e são acolhidas pela língua de braços abertos.

Um bom exemplo é a própria expressão “cair no gosto”. Consta que veio da pavorosa “cair no goto” —que sempre me sugeriu engasgo e tosse, não o acolhimento feliz existente em cair no gosto de alguém.

No entanto, como é evidente, o goto está para o gosto como o gume para os legumes. Só que o mal-entendido, em vez de risada, produz uma expressão mais elegante e que não ocorreria a ninguém contestar.

Outro exemplo: segundo o músico e pesquisador carioca Henrique Cazes, a ótima expressão “meter o pé na jaca” (tomar um porre) nasceu de um desses mal-entendidos. O pé se enfiava a princípio no jacá, cesto de frutas e legumes —olha eles aí de novo— que as quitandas cariocas antigas tinham na porta.

Naqueles estabelecimentos se vendia muita coisa, de víveres a cachaça. O cara tomava umas doses no balcão e ao sair, tonto, enfiava o pé no jacá. Se não é verdade, cai como uma luva.

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