Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Nós, os macaquinhos

Modismo editorial do 'foda-se' escancara nossa sede de copiar o copiado

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A atração que a linguagem, espelho da sociedade, sente pela repetição —pelo cacoete, pelo clichê, pela ideia feita, pelo tédio de copiar o já copiado— é um traço com raízes profundas em nossa história de animais sociais.

O gosto pelo rotundo lugar-comum que se fala de boca cheia tem parentesco com aquilo que sustenta a indústria da moda, com os memes, com a graça de ouvir e reproduzir bordões de programa humorístico. Somos macaquinhos imitativos.

Quando exagerada, essa tendência pode chegar à morbidez, como o fascínio do abismo. A curiosa epidemia dos livros com “foda-se” no título é um exemplo de exagero, mas antes de falar dela convém nos entendermos sobre algumas questões de fundo. 

Capa do livro "A Sutil Arte de Ligar o Foda-se"
Capa do livro "A Sutil Arte de Ligar o Foda-se" - Divulgação

Uma margem de redundância e familiaridade é indispensável à comunicação. A linguagem é uma biblioteca pública imensa e muito frequentada. Mensagens feitas de pura informação nova são as que estão escritas numa língua estrangeira que não compreendemos ou num idioma distópico de isolamento e loucura.

Se as peças do Lego são as mesmas, ninguém está obrigado a sempre encaixá-las obsessivamente da mesma forma. O preço pela exacerbação dessa tendência à repetição é pago numa moeda chamada inteligência coletiva. 

Pode assumir a forma de um imposto razoável, como nos chavões e expressões idiomáticas que trocamos confortavelmente no dia a dia. Mas também pode ser exorbitante, propagando uma forma de burrice.

A indústria cultural adora essa fraqueza do público. Não se pode acusá-la de estupidez (o nome técnico da coisa é esperteza) quando, cinicamente, ela tira o máximo proveito de encaixes de Lego bem-sucedidos, cevando no público a queda pela compulsão repetitiva. 

Em 2003, quando Dan Brown transformou o romance “O Código da Vinci” num dos grandes fenômenos editoriais de todos os tempos, teve início uma curiosa proliferação de livros que pegavam carona em seu sucesso. 

E tome “Revelando o Código da Vinci”, “Quebrando o Código da Vinci”, “Decodificando da Vinci”, “Os Segredos do Código”, “A Conspiração da Vinci”, “A Verdade por Trás do Código da Vinci” etc.

Normal, certo? A indústria se mostrou atenta aos anseios do público, que naquele momento estava apaixonado pela tese histórico-conspiratório-descabelada do escritor americano e louco para saber mais sobre ela.

Claro. Mas a avalanche de lançamentos oportunistas em torno do best-seller da vez privava os leitores dos únicos ingredientes que tornavam palatável o prato de Brown: sua fabulação, suspense e diversão.

Na ausência deles, oferecia-lhes um tratamento pavloviano de almanaque, fazendo-os salivar diante de palavrinhas mágicas. Código. Da. Vinci. 

O preço pago em inteligência coletiva era alto.

Cada momento histórico tem o apelo pavloviano que merece. O atual é doido por autoajuda e se encantou com o palavrão que o blogueiro Mark Manson usou no título de seu arrasa-quarteirão de 2016, o livro mais vendido do Brasil no ano passado: “A Sutil Arte de Ligar o Foda-se”, ao qual se seguiu “Fodeu Geral”, do mesmo autor.

O impacto disso em nosso ambiente imitativo se escancara hoje nas livrarias: “Liberdade, Felicidade e Foda-se!”, “O Coach do Foda-se”, “Foda-se o Estresse” e, em variações até certo ponto ousadas por envolverem outro sentido do tabuísmo, “Seja Foda!” e o recentíssimo “Enfodere-se!”. 

Estará desculpado quem pensar: “Agora fodeu”. Mas nem nisso somos originais, só repetimos um padrão.

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