Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

A pirralha e a pirraça

Greta, Bolsonaro e as delícias de um buraco negro etimológico

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Na tarde de terça-feira (10), Greta Thunberg matou no peito e assumiu como sua palavra-biografia no Twitter o “pirralha” que Jair Bolsonaro, rei da pirraça, tinha lhe atirado de manhã. 

Pirralha, todo mundo sabe, quer dizer criança, garota, mas com um viés depreciativo —reservado a crianças incômodas ou, mais maldosamente, a jovens imaturas— já presente quando a palavra nasceu, em fins do século 19. A pirraça é mais de um século mais velha.

A idade aproximada da pirralha os dicionaristas sabem, mas fica nisso. A palavra é um buraco negro etimológico: todas as fontes lexicográficas da língua portuguesa dizem ter origem obscura, e só. 

Como assim, só? Exatamente. Não é apenas que pirralho tenha origem incerta, controversa. Isso ocorre com uma infinidade de palavras e vale muita diversão a quem se dispõe a estudá-las.

A ativista Greta Thunberg
A ativista Greta Thunberg - 11.dez.2019 - Susana Vera/Reuters

Pirralho entrega zero. Tem “etimologia obscura” para José Pedro Machado e Antonio Geraldo da Cunha ,”origem obscura” para o Houaiss, “origem desconhecida” para Silveira Bueno. Variam as palavras, o breu é o mesmo. 

Antenor Nascentes se cala. Joan Corominas não se coça. Nem Nei Lopes vem nos socorrer com o banto, mesmo porque a lusofonice de pirralho salta aos ouvidos. Logo nos vemos, de mãos vazias, no deserto da mais profunda ignorância. 

Não vou dizer que o fenômeno seja único. Que é raro, é. Quando, por mais de cem anos, uma palavra passa incólume pela máquina de teses e fabulações das gangues etimológicas, da mais séria à mais palhaça, podemos ter certeza de que essa palavra é um osso muito duro.

Pirraça, sua vizinha de dicionário, também tem origem envolta em bruma, mas o pessoal pelo menos tenta, faz o que se espera dele: especula, sonda. Machado e Cunha registram uma possível conexão com perro (cachorro em espanhol), “perraça”.  

É pouco, mas muito melhor que nada. E nada é o que pirralho nos dá em todos os calhamaços, mesmo tendo, a meu ver, uma promissora semelhança semântica (além da óbvia sonora) com pirraça.

Pirralhos fazem pirraça, pois não? Há os que cabulam posse de presidente de país amigo, há os que vetam exibição de filme festejado e trabalham para que novos filmes não sejam feitos. Só de birra,  ressentimento. Pirraça. 

Mas que nada, os sábios não querem saber da linha especulativa perro-pirraça-pirralho —pirraça como uma espécie de cachorrada, pirralho um diminutivo de cachorro. 

É gente rigorosa, devem estar certos. Mais difícil é entender por que os filólogos de botequim não pularam em cima da associação fantasiosa de pirralho com um dos Pirros, o pensador grego que inventou o ceticismo ou o breve rei da Macedônia imortalizado pela batalha que perdeu vencendo.

Já não se fazem fabricantes de lendas etimológicas como antigamente. Na planície seca que é a origem de pirralho, eis que só vamos encontrar uns goles d’água num remoto oásis lusitano.

O “Dicionário do Falar de Trás-os-Montes e Alto Douro”, de Vitor Fernando Barros, não menciona a origem do termo, que define como “criança, puto”. Mas traz delícias: o sinônimo “cabeçalho” e a variante “piralho”.

Será preciso ter muita imaginação para ver em “piralho” uma perfeita mistura de dois nomes tabuísticos do órgão sexual masculino?

Ou será que tudo isso —palavras, origens, tantas teses, o prazer do jogo, o amor pela língua, pela arte e pela vida, num mundo cada vez mais mesmerizado pela morte—, isso sim é que nunca passou 
de pirraça de pirralho?

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