Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Insultos e 'eolulas'

Falácia do 'você também' domina nosso bate-boca político permanente

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Há cerca de um ano e meio, no auge da campanha eleitoral, escrevi aqui sobre a falácia retórica que trouxe do latim o nome de “tu quoque” (você também) e que em inglês está dicionarizada como “whataboutism”.

Trata-se de um truque baixo, mas eficaz, que encerra muitos debates: acusado de um erro ou crime que realmente cometeu, o sujeito, em vez de se explicar ou se retratar, acusa o acusador de fazer algo parecido.

A coluna de 2018 chamava atenção para os riscos da expansão do “tu quoque” numa campanha amargamente polarizada entre Bolsonaro e o PT. Terminava assim: “Embora seja útil para expor a hipocrisia do adversário, propiciando alívio ao acusado e diversão à audiência, o recurso do ‘você também’ deixa os erros intactos. Pior: cria em observadores não alinhados uma sensação difusa de descrédito e decadência moral generalizada. Convém ficar de olho nele.”

Atual Presidente da República, Jair Bolsonaro e ex-presidente  Luiz Inácio Lula da Silva
Atual Presidente da República, Jair Bolsonaro e ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - Adriano Machado - 18.nov.2019/Reuters

Pois bem, a notícia não é boa: o “whataboutism” não apenas se espalhou como se tornou desde então o argumento dominante nas discussões políticas em que nos enredamos 24 horas por dia, sete dias por semana.

No ambiente de exaltação permanente que as redes sociais favorecem e que o governo Bolsonaro faz questão de manter em fogo alto, nossa inteligência coletiva é refém de uma falácia.

O fenômeno é tão marcante que está na hora de lhe dar um nome caseiro, o equivalente vocabular do pão com manteiga para substituir o croissant. Nomear alguma coisa é o primeiro passo para compreendê-la. 

“Tu quoque” soa pedante. “Whataboutism”, derivado da expressão “what about...?” (o que me diz de...?), é intraduzível. Proponho que essa mistificação retórica seja batizada de “eolula”, substantivo masculino. 

Ficaria assim: “Acusado de acobertar assassinos, o deputado começou a espumar na tribuna, numa erupção prodigiosa de perdigotos, insultos e eolulas”. Ou: “Desculpe, mas isso que você diz é um eolula primário”.

Como é evidente, a palavra nasce da expressão “E o Lula?”, resposta principal —ou única— que as tropas bolsonaristas, tanto as humanas quanto as robóticas, repisam diante de qualquer crítica ao governo.

Tamanha concentração de “tu quoque” numa frase dá e sobra para fazer dela a base de uma nova palavra, mesmo que o partido de Lula passe longe da inocência no uso do recurso.
 

O “você também” está acima —e abaixo— de ideologias. Era famosamente usado na retórica soviética da Guerra Fria para rebater críticas americanas à prisão e ao assassinato de críticos do regime: “E vocês lincham negros”.

Virou a principal “defesa” do PT na época dos indefensáveis escândalos de corrupção que entraram para a história sob as rubricas mensalão e petrolão: “Até parece que o PSDB nunca roubou”.

A desgraça maior do “tu quoque”, ou eolula, é que seu padrão de rebaixamento moral mútuo faz dele o mecanismo de linguagem ideal para estes tempos de polarização, intolerância e irracionalidade crescentes. 

É um mecanismo estúpido e perigoso, mas há indícios de que possa estar perdendo força.

Quando o chefe do governo mais indecoroso e disfuncional da história insulta todos os brasileiros decentes na pessoa de uma jornalista séria, qual é o único eolula que seus apoiadores remanescentes conseguem invocar?


Os “grelos duros” de Lula. Uma grosseria machista lamentável, sem dúvida, mas o descompasso entre ela e a indignidade absoluta da fala de Bolsonaro chega a ser cômico. Assim vão desmoralizar o eolula.

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