Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Em defesa do escapismo

O entretenimento é uma das mais nobres 'utilidades' da literatura

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No mês passado, o tradicional prêmio Jabuti anunciou a criação de uma nova categoria, o “romance de entretenimento”. A novidade dividiu opiniões, e tem mesmo aspectos contraditórios.

Pelo lado bom, permite premiar trabalhos de alta qualidade que, por capricharem no colorido da contação de histórias, costumam fugir ao paladar “literário” —e menos vendável— que os prêmios favorecem.

Pelo lado ruim, a nova categoria institui um gueto para algo que é só literatura, podendo ser má, boa ou excelente. Por que precisaríamos de um certame à parte para reconhecê-la como tal?

O que teria achado disso o poeta e crítico José Paulo Paes (1926-1998), autor do famoso ensaio “Para uma literatura brasileira de entretenimento”?

Um argumento clássico —com o qual Paes não compactua— diz que o livro literário, que ele chama “de proposta”, acrescenta algo a nosso patrimônio intelectual e talvez moral, enquanto o livro comercial,
plebeu e frívolo, é só passatempo.

Curiosamente, a acusação de frivolidade acompanha o romance desde os primórdios, e já foi sacada contra autores hoje sagrados. Se houvesse Jabuti na época, Cervantes concorreria com seu Quixote na categoria entretenimento.

A lógica antipassatempo é que ele nos faz perder tempo, enquanto quem investe suas horas em leituras sérias, úteis, emprega melhor seu capital.

Esse argumento de negócios pode ser impecável, mas em termos artísticos não passa de uma falácia. Toda literatura é profundamente inútil, embora a gente viva lhe inventando aplicações.

No entanto, se vamos fazer uma lista das utilidades acidentais que ela pode ter, somos obrigados a elencar lá no alto o entretenimento, o escapismo, o desenho de novas e instigantes paisagens mentais
por meio da palavra.

Em certo sentido, toda boa literatura de qualquer gênero é escapista. Quando lemos de verdade, o volume do mundo lá fora fica mais baixo, temos uma experiência de vida alternativa.

O testemunho imediato dos sentidos, ancorados na força gravitacional do aqui e do agora, não nos basta. A cada punhado de horas temos que dormir e (saibamos disso ou não) sonhar. Mesmo no tempo acordado, damos um jeito de escapar.

Se isso vale para momentos históricos prósperos e pacíficos, imagine na tempestade em mar aberto que atravessamos hoje. Quando a realidade é intolerável, o escapismo pode ser questão de vida ou morte.

É claro que a literatura não é a única nem mesmo a principal forma de escapismo à nossa disposição. Há o escapismo ocupacional, plasmado em trabalho ou hobby. Há o químico, o audiovisual, o rede-socialista, o gamer, o 4-D.

No entanto, poucos têm menos efeitos colaterais indesejáveis do que a droga potente das palavras impressas.

Descendentes de animais sociais que sobreviveram e evoluíram aprendendo a ler o mundo pelo exemplo de outros da mesma espécie, somos fascinados por histórias.

Quando o bicho pega, quando Bolsonaro é o capitão desvairado, mistura de Ahab e Dick Vigarista, de uma nau de 200 milhões em mar encapelado, nessa hora tanto faz como escapamos. O fundamental é, de vez em quando, escapar.

Se é rumo a Hogwarts, ao caminho de Santiago, aos lençóis perfumados de Gabriela, à tenda em que Aquiles cultiva sua ira casmurra diante de Troia, importa menos.

Todas essas fugas pertencem a uma categoria só: a de um tesouro humano do qual não podemos, hoje menos do que nunca, nem pensar em abrir mão.

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