Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Feito o monossílabo de Olavo

Por que o que se multiplica e como recuperar a elegância perdida

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A deselegância está em alta tão acentuada no mundo (no Brasil nem se fala) que a própria palavra soa débil, como um eufemismo pudico no puteiro.

O menor dos nossos problemas? Não nego que existam maiores, mas sou daqueles espíritos holísticos ou doidos que acreditam que tudo se relaciona com tudo. Deselegância é a face estética da boçalidade.

Bia Doria toda emperiquitada a vomitar barbaridades sobre moradores de rua. Neomacarthistas “cancelando” um intelectual civilizado como Steven Pinker porque ele não comunga de seu ativismo. O Zeitgeist não está para peixe.

Descendo ao pré-sal moral do bolsonarismo, constatamos que um país capaz de produzir a elegância de Didi e Paulinho da Viola era, no mínimo, um desastre civilizatório mais esperançoso antes de enfiar o pé nessa jaca.

É preciso reagir. Com a intenção de contribuir, ainda que modestamente, para elevar o nível médio de garbo do ambiente, vou tratar aqui de um exercício de elegância textual.

Me refiro ao modo de conter a tendência da língua portuguesa à proliferação da palavra “que”, nossa principal cola sintática.

É até cruel dizer que, deixado solto, o “que” se multiplica como aquele monossílabo malcheiroso na boca de Olavo de Carvalho, buraquinho negro a sugar toda elegância. Mas é verdade.

A palavra pode ser pronome, conjunção, preposição e advérbio —para não falar do “quê” acentuado, que é substantivo ou interjeição— e se espalha à vontade na fala. Nossos ouvidos a toleram bem.

Em textos escritos, contudo, o excesso de “ques” é associado a construções desajeitadas. Vejamos um exemplo: “O que torna o cenário confuso é que os eleitores que votaram em Bolsonaro e que estão arrependidos dizem que pretendem votar nele outra vez, desde que seu adversário seja de novo o PT, o que prova que a oposição terá que trabalhar muito para que a reeleição não ocorra.”

O trecho acima tem 50 palavras, e o “que” comparece nada menos que dez vezes. Vale a pena reescrever a mensagem com o filtro ligado para ver de quantos pedregulhos conseguimos nos livrar: “A confusão do cenário se deve ao fato de eleitores arrependidos de Bolsonaro pretenderem, segundo dizem, votar nele outra vez se seu adversário for novamente o PT. Isso prova o quanto a oposição terá de trabalhar para evitar a reeleição.”

As palavras agora são 40, dez a menos do que na primeira versão. E dos dez “ques” originais não sobrou nenhum. A correspondência numérica perfeita é coincidência, mas a concisão do texto reescrito nada tem de fortuita.

Não há mágica nisso, mas alguns expedientes de paráfrase fáceis de reproduzir, como a substituição de orações por adjetivos e substantivos de igual valor (“eleitores que votaram em Bolsonaro e que estão arrependidos” vira “eleitores arrependidos de Bolsonaro”) e o uso do ponto para quebrar em duas uma frase longa.

Além disso, empreguei o verbo no infinitivo para transformar “que pretendem” em “pretenderem”, clássico dos clássicos na contenção do “que”, e substituí “ter que” por “ter de”, seis por meia dúzia.

Antes que me entendam mal, não se trata de demonizar o “que”, palavrinha das mais funcionais. O problema é de medida, e o exercício acima tem valor apenas ilustrativo.

A disposição de reescrever é tudo. Pensar melhor sobre aonde queremos ir e como chegar lá. Corrigir, emendar, jogar fora o que não presta. Vale para textos e para a história coletiva que estamos escrevendo.

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