Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Caquistocracia, o pior de nós

É raro um governo sintetizar a podridão de uma sociedade, mas acontece

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No dia 19 de abril de 2018, comecei esta coluna com o seguinte parágrafo: "Caquistocracia: governo exercido pelos piores indivíduos de uma sociedade. A palavra já andou borboleteando por aí, mas não consta de nenhum dicionário de português que eu conheça. Talvez devesse constar".

Desde então a palavra ganhou alguma circulação e pipocou em dicionários, inclusive no Houaiss, mas a verdade é que ainda não estava madura. Palavras correm atrás da realidade, não na frente. Naquele momento, Jair Bolsonaro era apenas um azarão na corrida presidencial.

Talvez nem ele imaginasse que iria, alguns meses depois, conquistar pelo voto o direito de instituir a caquistocracia emplumada em que hoje o Brasil se esfola e se despedaça.

Não é uma caquistocracia qualquer. A experiência caquistocrática brasileira aspira seriamente ao título de mais completa e ousada da história. Tudo indica que a hora da palavra chegou.

Em inglês, o termo "kakistocracy" existe --e é marginal-- há séculos. Em 2018, o pretexto para falar dele aqui foi o interesse momentâneo que tinha despertado depois de aparecer no ataque de um ex-diretor da CIA, John O. Brennan, ao governo de Donald Trump.

Fazia sentido: o bufão perverso que ocupa a Casa Branca é, com muitos topetes de vantagem, mais merecedor do mimo do que predecessores como Ronald Reagan e Barack Obama, que também chegaram a ser agraciados com a palavra na guerra retórica da política.

Historicamente, "caquistocracia" está aí para isso mesmo. Com seu jeito de comédia erudita, junta dois elementos gregos --"kakistos", superlativo de "kakos" (mau, ruim), e "kratía", poder-- num xingamento sofisticado, uma hipérbole insultuosa.

Não é uma palavra que cientistas sociais costumem levar a sério em suas reflexões, como democracia, autocracia, aristocracia e outras da família. Tem mais a ver com a volatilidade do insulto lusófono "canalhocracia", dicionarizado pela primeira vez por Cândido de Figueiredo em 1913.

Entende-se. É raro que a caquistocracia possa ser tomada ao pé da letra para nomear um governo que, de fato, reúne aquilo que de mais vil e grotesco um grupo humano tem para oferecer, sua pior versão possível, o esgoto exibido na sala de estar. Até por razões de sobrevivência social --o componente necessário de autodestruição e loucura é grande demais.

Acontece, porém. Não há termo mais adequado a um governo em que os responsáveis pela saúde promovem a morte, os gestores da educação a vandalizam, os encarregados de preservar o meio ambiente o devastam, os timoneiros das relações exteriores colhem achincalhe mundo afora --e o presidente se chama Bolsonaro.

O curioso é que o mais catastrófico governo de nossa história, responsável por 100 mil mortos e contando, não se contenta em ser a apoteose da caquistocracia. Faz questão de agitar essa bandeira o tempo todo, para ninguém esquecer.

Aparentemente, não basta tocar em frente o projeto de entregar a gente inepta --ou coisa pior-- tudo o que se deseja destruir. Deve-se frisar, de preferência com escárnio, a intencionalidade do bota-abaixo. A nomeação de uma blogueira de turismo para a Funarte é só o episódio mais recente.

Pensando bem, talvez caquistocracia corra o risco de soar como um eufemismo meio aguado no atual estágio da calamidade brasileira. Terá chegado a hora do neologismo "tanatocracia" --governo da morte?

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