Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Ideia fixa também é uma doença

Quadro agudo da morbidez brasileira nos impede de ter outro assunto

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Em seu romance “A Montanha Mágica”, passado num sanatório para pacientes de tuberculose na Suíça, o escritor alemão Thomas Mann (1875-1955) resume o modo como a doença afeta a percepção que os seres humanos têm de si e do mundo.

“A doença torna os homens mais físicos, priva-os de tudo o que não seja corpo”, escreve. O corpo doente se transforma no mundo inteiro, e o lado de fora se esvazia de sentido até que “todos os dias” viram “o mesmo dia se repetindo”.

Essa capacidade que demonstra o corpo de se impor como “importante e independente do resto” por meio da morbidez tem me ocorrido ao pensar em como a doença brasileira nos impede de falar de qualquer assunto que não seja... a doença brasileira.

Quando digo isso, estou usando a doença como metáfora (com licença, Susan Sontag) do complexo de mazelas políticas e civilizacionais que, velho de séculos, acabou por nos conduzir ao quadro agudo de autodestruição chamado governo Bolsonaro.

Como falar de outra coisa? O corpo precisa concentrar seus recursos na doença, em compreendê-la e combatê-la. Ser monotemático e obsessivo nesse caso não é apenas louvável. É —ressalvado algum impulso suicida— inevitável.

Mesmo assim, pensar nisso dá uma pena danada. Eu vejo as melhores cabeças da minha geração —e das gerações abaixo e acima da minha— gastarem tempo e energia combatendo gente desclassificada que se empenha em destruir conquistas civilizatórias sacramentadas há décadas.

Pior: eu as vejo obrigadas a agir assim sem parar, como se todos os dias fossem “o mesmo dia se repetindo”, nas palavras de Mann. A tal ponto que ninguém consegue fazer mais nada.

Quantos poemas de amor nunca serão escritos por causa disso? Quantas canções de celebrar colheita ou descrever o mar, de desafiar os deuses ou brincar infantilmente com os sons das palavras?

Quantos dramas teatrais sutis sobre a incomunicabilidade, o envelhecimento, o medo da morte, a permanência da arte? Quantas reflexões e teses luminosas sobre os mais variados aspectos envolvidos na tarefa de compreender e aprimorar a trágica —mas de alguma forma bela— experiência humana na terra?

Nada disso. Danem-se o universal, o atemporal, o lúdico, o sutil, o carnavalesco, o gesto gratuito, o gesto laborioso. Danem-se a lenta pesquisa científica, a lavoura abnegada dos professores, tudo aquilo que depende de uma mínima estabilidade para que, passando, os dias conduzam ao futuro dos organismos não mórbidos.

Revogue-se, para resumir, toda forma de alegria, tristeza, esperança ou preocupação que não seja pautada no presente histérico. Os sintomas da doença se multiplicam, se agravam, exigem respostas enérgicas de todos os órgãos que ainda são capazes de reagir.

Oi? Monstros que se autointitulam “pró-vida” infernizam a vida de uma menina de dez anos grávida do tio que a estuprava? As muitas camadas de horror sobrepostas não deixam margem a dúvida: como falar de outra coisa?

O Brasil sempre foi meio autocentrado. Não dá para negar que nossas iniquidades históricas —a violência inadmissível que toleramos, a hipocrisia terminal de nossa elite, o racismo e o machismo nosso de cada dia, a dificuldade tragicômica de nos enxergarmos no espelho— são temas fundamentais.

Fundamentais, mas não exclusivos. A vida é mais, tem que ser mais. A menos, claro, que uma ameaça de morte seja tão real e imediata que cancele todo o resto.

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