Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

O gorila albino e o chimpanzé

Como Trump fez a disputa de liderança regredir a padrões pré-humanos

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No debate crucial para a história americana que travou com Joe Biden, Donald Trump foi por uma hora e meia —tanto nos urros quanto na postura corporal, olhar enviesado violentamente hostil, queixo alto— um gorila albino perfeito, feroz na defesa de seu território.

Peço perdão aos gorilas pela comparação, é claro que eles não a merecem. Mesmo assim, é verdadeira. Por isso o debate pareceu tão deplorável e tão chocante à maioria dos analistas, incluindo uma parte dos republicanos. Foi um espetáculo do reino do sub-humano.

Seguindo na imagem, Joe Biden se viu transformado num chimpanzé grisalho de óculos na ponta do nariz, representante deslocado de uma era política menos selvagem, fazendo o que dava nas circunstâncias. E o que dava parecia pouco.

Trump, de um lado, aponta para Biden, que tem as duas mãos sobre o púlpito
Debate entre o atual presidente Donald Trump e o candidato democrata Joe Biden - Brian Snyder/Reuters

Irônico, quase sempre digno, mas fisicamente frágil, era evidente que o candidato democrata estava aturdido como todo mundo —do mediador da Fox News a cada um dos milhões que assistiam— com a atuação do primata alfa, o grande bully alaranjado.

A impressão inicial, pelo menos na minha bolha, foi a de que Biden levava uma surra. Alguns jabs que arriscou foram bons, e doeram no outro, mas as hesitações e o olhar baixo por tempo demais, fugindo do olhar de Trump, projetavam derrota.

Para encenar de forma tão bem-sucedida o retorno a padrões pré-humanos de disputa de liderança, Trump efetua uma operação linguística notável. De alguma forma, os vocábulos da língua inglesa que saem de sua boca soam ocos como linguagem. Como ele faz isso?

Parte do truque está no tom, no volume e no ritmo dos golpes sonoros, mas o mais importante é o esvaziamento de sentido provocado pelo descompromisso com qualquer ideia de verdade.

Sim, muito já se falou sobre estarmos na era da pós-verdade. Mesmo para os padrões frouxos de veracidade factual que vigoram neste século, Trump é um fenômeno. Perto dele, Bolsonaro não passa de um aprendiz.

Tudo indica que o presidente dos EUA é o maior mentiroso da história política —uma galeria cheia de bambas do gênero. Há momentos de pura magia em que, numa frase de seis palavras, sete são cascatas.

Quando a referencialidade —a correspondência mínima com o mundo— é quebrada de forma tão completa, a linguagem rompe com seu padrão-ouro e fica soltinha no oceano do sentido. Está pronta para se reaproximar do rosnado da besta.

A reaproximação se dá por meio de frases feitas, memes paranoicos, insultos, palavras de ordem fascistoides em escala ascendente e outros apelos aos baixos instintos da espécie —medo, ódio, tribalismo, covardia, violência.

A linguagem de Trump aspira a não ser, é a linguagem tentando se matar. Reacionária, trai com ousadia jamais vista o pacto feito por nossos primeiros antepassados —sapiens ou erectus?— que foram capazes do símbolo.

Vitória do gorila? Não tão depressa. Quem já frequentou pátio de escola sabe que o bully, o valentão, é invencível. Na hora. Depois, na maior parte dos casos, coleciona derrotas na vida até morrer. As primeiras pesquisas pós-debate favorecem Biden.

Por que, sendo tão veemente em seu show de irracionalidade e intimidação, o gorila albino não venceria no fim? Porque é um gorila, e talvez as pessoas, comparadas às de quatro anos atrás, estejam menos dispostas a entregar tanto poder nas patas de um gorila.

Pelo menos é essa a esperança de quem ainda não desistiu de ver o sórdido 2020 tirar da manga um truque capaz de redimi-lo.

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