Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Modos de moderar o desmedido

O que a etimologia nos ensina sobre a lenda do Bolsonaro moderado

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A história da palavra moderação esclarece uma ou duas coisas sobre a lenda do Bolsonaro moderado, que tem convencido muitos analistas políticos.

É inegável que os enroscos jurídico-policiais da família forçaram Jair a maneirar sua conduta. O presidente está mais pragmático, tem feito menos bullying com o país, retirou poder da seita olavista e o deu ao centrão. Mas isso é moderação?

É claro que a palavra, em estado de dicionário, pode caber. Moderar-se é cultivar a contenção e a prudência, tomar o caminho do meio. Uma das acepções do substantivo no Houaiss é “afastamento de todo excesso”, ou seja, de todo extremo.

Se o centrão padece de um claro excesso —o de desfaçatez para explorar como parasita as fragilidades do sistema político—, convém reconhecer que ele é, já no nome, o oposto do extremo, uma espécie de “normalidade” brasileira. Isso quer dizer que Bolsonaro se moderou?

Aí entra a etimologia. Ao jogar uma luz diferente sobre a palavra, desvendando seus meandros históricos, ela sopra em nosso ouvido que Bolsonaro não se moderou coisa nenhuma.

Como moda, modernidade e acomodação, moderação é uma palavra da vasta dinastia vocabular fundada pelo substantivo latino “modus”. Nosso bom e velho modo, certo? Sim, mas não tão depressa.

O primeiro sentido de “modus” era o de medida, tamanho, extensão, quantidade. Esse sentido, que quase não se transferiu para o português modo, foi o que deu origem a “moderationis”, a arte de encontrar a medida justa.

Como foi que a expansão no sentido de “modus” levou a palavra, já no latim, a viajar da quantidade à qualidade, do tamanho ao jeito —da medida ao modo?

Reconstituir velhas dinâmicas enterradas na história das palavras vai sempre comportar uma dose de risco, ou talvez seja melhor chamar de poesia. Eu aposto na ideia de ritmo.

Um dos poucos sentidos quantitativos que a palavra portuguesa modo herdou de “modus” foi justamente o musical (“padrão rítmico constante numa composição”).

Pensando bem, o jeito não é sempre um ritmo? Quantas batidas de coração, palavras, piscadas, tropeços verbais. Quantas inspirações, expirações, gotas de suor no buço. Quantos silêncios, quantos mortos de Covid por dia, quantos hectares queimados por hora.

O modo, o estilo —que alguém já disse ser o homem— sempre incluirá uma ideia de medida. O que a história da palavra desvenda nesse caso é o parentesco da moderação com uma maneira, um jeitão, um modo mesmo de ser.

Algo que, convenhamos, pode ser bem mais difícil de sair trocando ao sabor das circunstâncias do que a medida dos compromissos de ocasião que alguém calcula num tabuleiro político. Só de dentro para fora se muda um modo para valer.

Nesse sentido, é evidente que Bolsonaro não se moderou. Parece mais correto dizer que, constrangido, cedeu momentaneamente a um sistema mais forte do que ele.

Celso Rocha de Barros perguntou esta semana se o presidente continuará “cauteloso” caso os protestos de rua voltem ou ele seja reeleito. Uma pergunta que os maiores compradores e vendedores do “Bolsonaro moderado” hesitariam em responder com um sim.

Eis mais uma definição de moderação no Houaiss: “virtude de permanecer na exata medida”. Bom, começa que “virtude” e Bolsonaro são palavras que convivem mal.

E qual será a “exata medida” em que a exaltação de um torturador condenado ou a piadinha sexual com uma criança se tornarão manifestações comedidas, prudentes, amenas?

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