Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Fiquem calmes, amigues!

O mundo não se divide entre reaças e sabotadores da cultura ocidental

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Não são uma exclusividade brasileira as marolas provocadas na superfície da língua pelo que se chama de "linguagem inclusiva". Grande parte do mundo anda investindo contra as marcas —reais ou imaginárias— que velhas estruturas de poder deixam nas palavras.

No caso dos idiomas neolatinos, como o nosso, os gêneros gramaticais são o principal campo de batalha de uma guerra cultural cada vez mais quente, que nas últimas semanas tem balas zunindo para todo lado.

Espalhou-se a ideia de que a gramática portuguesa é machista ao determinar, já faz quase um milênio, que o gênero masculino dê conta de grupos de gênero misto —"todos os elefantes", por exemplo, mesmo que se trate de nove elefantas e um só macho.

Protesto por direitos de transexuais na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 2019
Protesto por direitos de transexuais na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 2019 - Adriano Vizoni - 8.out.19/Folhapress

Linguisticamente, a história não é tão simples. Ainda que fizesse sentido (não faz) igualar gênero gramatical e sexualidade, análises menos apressadas questionam a tese do machismo, apontando antes para a ausência de marcador de gênero numa palavra como "elefante".

Acontece que isso importa pouco, pois estamos diante da criação de um fato político: a eleição de um traço da língua como espelho de tensões sociais reais, a fim de provocar estranhamento e reflexão, "desnaturalizando" preconceitos.

Esse fato político extrapolou faz tempo o conflito inicial entre dois gêneros para incluir, em posição de destaque, transexuais ou quaisquer pessoas que se identifiquem como não binárias.

De repente, a famosa e meio cafona solução Sarney para o alegado machismo da língua —"brasileiras e brasileiros", como o ex-presidente começava seus discursos nos anos 1980— já não bastava.

Surgiram as formas "brasileirxs" e, com menos sucesso, "brasileir@s". Como ambas são impronunciáveis e criaram novos problemas, sobretudo para deficientes visuais que dependem de programas de leitura automática, nos últimos tempos tem prevalecido "brasileires".

Dizer que a questão é política antes de ser gramatical significa dizer que é polarizadora ao extremo —não parece ser esse o destino inevitável de tudo o que é político neste século?

Nos últimos dias, a minoritária porção letrada da população brasileira —diante da gloriosa indiferença da maioria, é verdade— tem se dividido com paixão entre os que são contra e os que são a favor de escrever e falar "querides brasileires".

"Contra" e "a favor" ainda dizem pouco. Os primeiros tendem a ver um sinal de sabotagem definitiva do Ocidente numa simples irreverência formal, pichação no muro da gramática. Os outros se inclinam a tratar qualquer resistência ao modismo como sintoma de misoginia, homofobia e transfobia.

Recomendo pôr a bola no terreno. Quem opta por escrever "querides amigues" tem esse direito? Óbvio que sim. Como teria o de escrever "kerydez amyguez", à moda de Glauber Rocha, se lhe desse na telha.

Naturalmente, quando se provoca, muitos reagem à provocação —a ideia é essa, certo? Acho que não faz bem à causa de ninguém pintar os que se incomodam ou fazem humor com isso como reacionários ou escravos da gramática normativa. Mesmo porque esta não vem ao caso.

Estamos falando de gramática profunda. Campanhas militantes bem conduzidas podem estigmatizar uma palavra ou pôr uma nova em circulação, mas mexer em estruturas desse tipo é outra conversa. Tudo o que sei sobre linguagem (admito que não é muito) me diz que a novidade terá fôlego curto. Línguas mudam o tempo todo, mas não assim.

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