Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Descrição de chapéu
pantanal

Micado, o Brasil paga mico

Sem amigos nem planos, terminamos 2020 com a carta do macaquinho na mão

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O Brasil está pagando mico —e não me refiro àquele macaco da foto emblemática, carbonizado em atitude de súplica, que estampou a capa da Folha de 11/10. Embora a devastação do Pantanal seja parte do problema.

O mico que o Brasil está pagando é aquele que o dicionário Aurélio define como “situação embaraçosa ou vexatória”. Uma acepção que a língua, em constante reinvenção, foi buscar há décadas numa gíria adolescente.

Se um dia foi um termo meio abusado (“que mico, pai!”), o mico sossegou o facho. Arranjou emprego como palavra de ampla circulação e faz tempo que não assusta ninguém. É a sina de toda gíria bem-sucedida demais —deixar de ser gíria.

Uma prova definitiva de sucesso é que o mico se gramaticalizou, virou parte de uma palavra nova. No caso, o verbo micar —eu miquei, tu micaste, ele micou.

O Houaiss situa o surgimento de micar em torno de 1985. Registra duas acepções correlatas: “não ter êxito; gorar, fracassar, malograr”; e, no vocabulário econômico, “perder o valor ou passar a ser de difícil aceitação”.

A história da palavra ajuda a explicar por que o Brasil vai fechando o ano de 2020 micado. A ideia de solidão é inseparável do vexame, como veremos. Ter na carteira o título errado, o que não vale mais nada, e ser o último do pregão a se tocar disso.

Antes, a história. A palavra, por muito tempo apenas zoológica, foi parar num dicionário de português pela primeira vez em 1789. Era um decalque perfeito do espanhol “mico”, que já tinha então dois séculos de idade.

O etimologista Joan Corominas encontrou a origem de “mico” num termo indígena caribenho, “meku” ou “miko”, que designava uma ou mais espécies de macaquinhos.

No Brasil a palavra é aplicada, em sentido estrito, a saguis e macacos-pregos. O bichinho carbonizado no Pantanal era um bugio, não um mico.

Como o mico virou vexame? O percurso entre os reinos animal e simbólico pode parecer aleatório ou obscuro, mas só até fazermos uma escala no mundo dos jogos de salão do século passado.

O baralho do Mico Preto nasceu como marca registrada, antes de mico-preto virar substantivo comum. O jogo ainda existe no mercado, embora em tempos virtuais já não seja nem a sombra do que foi como passatempo infantil e familiar.

Quem jogou se lembra: o objetivo era se livrar da carta do macaquinho, passá-la adiante. Perdia quem terminava o jogo com aquilo na mão.

Era um vexame danado. Pelo menos, todo mundo morria de rir. A zoação com quem micava era parte inseparável da brincadeira, e tão importante que muitas vezes durava mais que o próprio jogo.

Quem mica, mica sozinho. O maior azar do pequeno primata brasileiro foi o gorila albino gringo que ele orbitava, fazendo macaquices, ter sido deposto, derrotado pelo chimpanzé grisalho.

O gorila meio que ignorava as sabujices do miquinho, mas não deixava de lhe oferecer proteção e algum arremedo de propósito na vida.

Sem gorila e sem amigos, andando com párias, à deriva num mar pandêmico cortado por embarcações muito mais modernas e velozes, o miquinho vai se dando conta de que está frito.

Com um governo perdido e grogue liderado por um infeliz que foi parar lá por acidente, os ratos do porão circulando com desenvoltura pelo convés, ele entende por fim que se lascou.

Sem dinheiro nem sinal de plano econômico, o Brasil passa uma vergonha gigante —aquilo que os hiperbólicos chamam de King Kong. Chegamos ao fim de 2020 com o mico na mão.

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