Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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O passaralho está no cardápio

Não contente em registrar palavras, número 2 do Aurélio inventou uma

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Em seu livro sobre a história do dicionário Aurélio, que resenhei para a Ilustrada no domingo (13), o jornalista Cezar Motta dá uma bela contribuição à etimologia da língua brasileira.

O autor de “Por Trás das Palavras” conta que o termo “passaralho”, mistura de pássaro com caralho, foi criado na mesa de um bar carioca por um redator do falecido Jornal do Brasil em janeiro de 1974, quando demissões se sucediam na Redação.

Como acontece hoje em toda parte. Nos últimos dias, uma feroz revoada do bicho nas Redações do país e da palavra nas redes renovou a atualidade do passaralho, enquanto as nuvens negras que pairam sobre a economia brasileira o levam a atacar outras categorias profissionais.

Motta tem até a certidão de nascimento da palavra. Sim, ela já nasceu verbete, ainda que em formulação diferente da que ganharia no Houaiss anos mais tarde —“dispensa relativamente numerosa de empregados”.

O documento que um homem alto de bigode rabiscou no bar aquela noite dizia: “Designação popular e geral da ave caralhiforme, faloide, família dos enrabídeos” —e mais um punhado de linhas nessa veia.

Quem reconheceu o estilo do lexicógrafo? O pai do neologismo é o maranhense Joaquim Campelo, 89 anos, braço direito de Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989) no longo preparo do mais popular e querido dicionário brasileiro.

Há cinco anos, Campelo perdeu no STF a ação que movia para ser reconhecido como coautor —o que ele foi de fato, como o livro de Motta deixa mais que comprovado— de uma obra que vendeu 15 milhões de exemplares

Não sei até que ponto o passaralho é conhecido dos brasileiros em geral, mas é fato que a palavra já bateu asas para longe da gaiola de gíria carioca —a princípio só de jornalistas— que habitava em seus primeiros anos.

Eu, se fosse Campelo, estaria me sentindo vingado. O velho Aurélio podia ser um grande colecionador de vocábulos, mas não consta que tenha criado nenhum.

Inventar uma palavra e conseguir injetá-la na corrente principal de uma língua é uma façanha. No século 19, o médico e latinista carioca Antônio de Castro Lopes deu mil tiros para acertar um ou dois.

O cara era inimigo mortal dos francesismos, das palavras que chegavam de Paris —figurinhas até mais fáceis então do que os anglicismos são hoje.

Cunhou uma batelada de neologismos cultos para substituir os termos importados, certo de que protegia a língua de uma ameaça terrível: lucivelo no lugar de “abat-jour”, runimol no de “avalanche” etc.

Os castrolopismos são engraçados, emblemas da arrogância intelectual que pode nos acometer diante da língua —a ânsia de proibir, direcionar, ditar, controlar, tirar de trás da orelha.

Toda língua parece uma letra dos Tribalistas —é de todo mundo e de ninguém. Palavras são indomáveis, amorais, pouco ligam para o gosto de cada um.

Mesmo assim, o incansável Castro Lopes marcou seus gols. Cardápio, criado para combater “menu”, passou longe de conseguir matar o rival, mas está bem vivo. E convescote, adversário de “pique-nique”, que pede alguma ironia no uso, eu sempre gostei muito de falar.

Não é impossível intervir na língua, mas convém ter humildade e arte, sabendo que quem manda no fim das contas é ela, quer dizer, o coletivo dos falantes.

Para as palavras, “que vença a melhor” é uma frase sem sentido —a melhor é a que vence, por definição. Parece que a criatura de Campelo está vencendo.

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