Dos 100 anos redondíssimos que a Folha completa na sexta (19), nossos caminhos só começaram a se cruzar em 1984, ou seja, o ano 63, marcado pelo início do comando de Otavio Frias Filho e seu ambicioso Projeto Folha.
Como se sabe, era o tempo das Diretas- Já, encampadas pelo jornal, e o epílogo da ditadura militar. No plano pessoal, o primeiro ano de minha carreira como jornalista formado.
Morador do Rio, eu trabalhava como repórter esportivo no Jornal do Brasil e achava que não podia estar em lugar melhor. Para quem não o conheceu, é difícil dar uma ideia do que o JB representava para a opinião pública nacional entre os anos 1960 e 80. “Uma espécie de Folha da época” seria uma imagem aproximada.
No entanto, pouca gente no jornalismo carioca deixou de perceber naquele momento que o jogo estava virando. Pela primeira vez na história, tornava-se obrigatório ler no Rio um diário de São Paulo. E não só entre jornalistas, raça que por deformação profissional lê de tudo —até blogueiros governistas.
Além de obrigatório, ler a Folha no Rio de 1984 era fácil: com distribuição agressiva, o jornal podia ser encontrado na maioria das bancas do centro e da zona sul da cidade.
Claro que a disponibilidade não significaria muito sem o conteúdo. Para mim e meu pessoal, o conteúdo eram as apostas artísticas ousadas, às vezes bizarras, da Ilustrada. O papo-cabeça do Folhetim. Aquele cosmopolitismo paulistano na fronteira do deslumbramento. A arrogante iconoclastia juvenil. O desassombro político.
Não podia haver dúvida: aquele jornal era mais vibrante, mais jovem, mais maluco do que qualquer coisa que se produzisse na envelhecida —mas ainda soberba— ex-capital federal.
Pudera. Otavinho tinha botado todos os jovens malucos no controle da nave, quebrando de modo inédito o modelo de promoções lentas, graduais e seguras que o jornalismo compartilhava até então com a caserna —e que logo seria flexibilizado em muitas Redações.
Resumindo, o JB era MPB, a Folha era rock. No ambiente político-cultural de 1984, isso situava o “jornal dos Frias” a favor da onda da história e o “jornal do Nascimento Brito” no contrafluxo.
Um novo Brasil nascia, e isso não era só uma metáfora. Havia o consenso de que, pós-milicada canhestra, seria um país melhor —menos careta e mais inteligente, plural, aberto ao mundo.
No ano seguinte fui convidado por Matinas Suzuki Jr. para trabalhar na sucursal carioca da Folha, que ele dirigia. Calhou de durar pouco. O JB foi me buscar de volta poucos meses depois, e de lá, anos mais tarde, minha carreira tomou outros rumos.
Envelhecemos. Passaram as acnes da implantação do Projeto Folha. O Brasil democrático cumpriu suas promessas só em parte, como era natural, e trouxe novos desafios.
O tsunami digital levou de cambulhada o modelo de negócio da imprensa. O JB, entre outros, afundou. A Folha se reinventou, amadureceu, errou e acertou. E continuou obrigatória.
O jornal e eu nos reencontramos em fins de 2016. O convite de Sérgio Dávila para ocupar este espaço semanal teve sabor de acerto de contas com minha própria história de leitor.
Todos sabem o que representa para a opinião pública nacional esta centenária. Um bom jornal é uma nação conversando consigo mesma, disse o dramaturgo Arthur Miller. Ser o veículo mais odiado por um projeto de tirano como Bolsonaro é a cereja do bolo de aniversário.
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