Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

O país da cara de pau

Não faríamos má figura num hipotético campeonato mundial da modalidade

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“O ministro Pazuello se comunica muito mal. Eu costumo dizer que, se a gente tivesse o Mandetta comunicando e o Pazuello trabalhando, a gente tinha a dupla ideal”, declarou há poucos dias ao jornal O Globo o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Não consta que tenha ruborizado ao proferir tais palavras. Mais do que um brasileirismo, a cara de pau é uma instituição nacional, uma máscara mais usada —especialmente nos meios políticos, mas não só nele— do que aquelas que salvam vidas.

É provável que cara de pau seja pouco para qualificar o ato de atribuir a uma simples falha de comunicação a catastrófica gestão da Saúde no Brasil, num momento em que o número de mortos da pandemia bate em 250 mil, a vacinação avança com lentidão de pesadelo e a festa do vírus não tem hora para acabar.

Que a cara de pau é parte do pacote, é. Esse é só um exemplo, entre incontáveis, da desfaçatez e da falta de vergonha (Houaiss) codificadas numa expressão facial que se mantém impassível enquanto a boca profere as maiores barbaridades.

Entre as barbaridades podemos listar a contação de mentiras, a defesa de práticas condenáveis, a desculpa na qual ninguém acredita e a justificação de comportamentos sórdidos em geral.

É difícil dizer quando surgiu a cara de pau —não a coisa, mas a expressão, que era palavra composta (“cara-de-pau”) até o acordo ortográfico eliminar seus hifens e transformá-la em locução. O comportamento se perde nas brumas da pré-história.

Ausente de dicionários antigos, a cara de pau aparece nos léxicos modernos como alternativa a “caradura”, palavra hoje menos usada, da qual pode ter se originado como variação humorística.

Ou não. Em Portugal existem as expressões “cara estanhada” e “cara deslavada”, que têm o mesmo significado. Lá como aqui, a ideia é destacar a capacidade cínica de manter uma fachada neutra para disfarçar emoções. “Poker face”, como se diz em inglês.

A cara de pau também pode, em certos contextos, ser traduzida para o inglês como “deadpan”, outro nome dessa fisionomia impassível na língua do gênio da comédia muda Buster Keaton —tão notável no fundamento que ganhou o apelido de Stone Face, Cara de Pedra.

Esse, porém, é o lado benévolo da cara de pau. O cômico “deadpan” não presta para dar conta de todos os seus sentidos negativos —de descaramento, despudor, atrevimento. Para isso é preciso recorrer, em inglês, a um termo de origem iídiche: “chutzpah”.

Caradura é uma palavra registrada pela lexicografia desde 1913, mas as abonações literárias de cara de pau que constam no “Dicionário de Usos do Português do Brasil”, de Francisco S. Borba, datam dos anos 1960 e 70. Isso não quer dizer que a expressão tenha sido criada naquele momento.

Os exemplos de seu uso trazidos pelo livro de Borba foram extraídos de obras famosas pelo mergulho na linguagem do submundo urbano brasileiro, como a peça “Navalha na Carne”, de Plínio Marcos, e o livro de contos “Malagueta, Perus e Bacanaço”, de João Antônio.

A cara de pau tem uma margem de ambiguidade moral. A dos políticos é muito parecida com a de um herói picaresco como João Grilo, do “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, que nos diverte.

Diante da ausência de parâmetros confiáveis de aferição, seria leviano sustentar que o Brasil deteria alguma superioridade num hipotético campeonato mundial de cara de pau. Mas duvido que fizéssemos má figura.

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