Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

O movimento e a bagunça

Sobre a falácia de que o golpe de 64 matou a democracia para salvá-la

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O “movimento de 1964” a que se refere a ordem do dia do novíssimo ministro da Defesa, Braga Netto, parece ser hoje nos círculos militares uma espécie de eufemismo oficial para a deposição do presidente João Goulart.

O fato histórico que completou 57 anos ontem (alguns historiadores situam o aniversário nesta quinta, dia da mentira) tem um nome correto e sóbrio no vocabulário da ciência política: golpe de Estado.

Acima de disputas ideológicas, nenhuma conversa séria sobre aquele período pode prescindir do nome certo das coisas. Mas eufemismo é eufemismo, outro papo.

Existe para suavizar expressões duras e, muitas vezes, dourar pílulas amargas, o que torna frequente sua aplicação em peças de propaganda como a de Braga Netto.

Quando Jango se refugiou no Uruguai, eu era novo demais —tinha dois anos— para debates linguísticos desse tipo. Haveria tempo de sobra para isso. Na época não havia como saber, mas aquele golpe deu início a uma ditadura que ia durar 21 anos.

Um ciclo autoritário em que se entra bebê e do qual se sai adulto deixa marcas fundas misturadas com memórias pessoais. Lembro que, quando aprendi a ler, o ufanismo escancarado da escola brasileira só se referia ao golpe de 64 como “revolução”. A imprensa não ficava atrás.

Era o que passava por sobriedade vocabular na época. Estávamos, afinal, numa ditadura, regime político que tem como característica marcante tolher a liberdade de pensamento e expressão.

Os fãs mais ardentes do regime militar se lambuzavam num epíteto bem mais ridículo: a “Redentora”. Mas em geral a palavra revolução resolvia a parada.

Se as plumas e paetês auriverdes de “Redentora” caíram em desuso, ficou viva na cabeça de muita gente a ideia de que o golpe militar —a princípio com amplo apoio civil— representou a “redenção” da democracia brasileira diante da “ameaça comunista”.

Na vida real, Jango era só um reformista —e dos mais atrapalhados. O Brasil esteve tão perto do comunismo naquele ou em qualquer momento quanto esteve prestes a entrar a galope no Primeiro Mundo nos anos Lula. Somos um povo dado a delírios coletivos.

Mesmo assim, vê-se na nota do novíssimo ministro da Defesa a velha falácia, ainda que expressa em termos mais comedidos: foi para “garantir as liberdades democráticas” que as Forças Armadas mataram a democracia.

De 1964 a 1985, a ditadura teve várias fases e reviravoltas. Basta dizer, como resumo, que cassou direitos políticos, censurou, exilou, torturou e matou.

Sua barra perante a sociedade ficou suja. Ulysses Guimarães a resumiu em duas palavras: “ódio e nojo”. Ou assim parecia. Hoje se sabe que a “anistia ampla”, ao perdoar criminosos abrigados no seio do Estado, contribuiu para a permanência da doença.

Na tetralogia “As Ilusões Armadas”, Elio Gaspari chama de “tigrada” a turma barra-pesada do submundo militar que se revoltou com a redemocratização iniciada por Ernesto Geisel —um ditador inconformado, segundo o autor, de que o regime tivesse virado “uma grande bagunça”.

Essa galera se esparramou nos anos seguintes por diversas áreas do crime, dos esquadrões da morte ao jogo do bicho, das milícias ao tráfico de drogas. E acabou encontrando em Jair Bolsonaro seu novo redentor.

A “grande bagunça” deplorada por Geisel fez sua volta triunfal. Como curiosidade, registre-se que uma das acepções de “movimento” na língua urbana brasileira é a de varejo de drogas em comunidades pobres.

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