Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Pontuar, um verbo emergente

Uma coluna estritamente linguística, mas pontuada pela morte

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O verbo pontuar está na moda no Brasil, mas não em nenhuma das acepções que constam nos dicionários. Isso não é juízo de valor, mas constatação. Se o novo pontuar tiver fôlego para ir além do modismo, os dicionários do futuro o acolherão.

É possível que ele tenha precisado se reinventar —outra palavra da moda— justamente para não ficar desempregado, depois que sumiu das mensagens de texto do WhatsApp.

Se hoje poucos pontuam (empregam sinais de pontuação), o que tem de gente pontuando (destacando uma ideia, expressando uma opinião) é uma enormidade.

Nem só de pontuação vive o pontuar tradicional. Sempre foi possível pontuar um discurso, marcando seu andamento, com gestos ou frases. Como esta: no tempo que você levou para ler a coluna até aqui, mais um brasileiro morreu de Covid.

Outras acepções clássicas do verbo são a de dar nota, como faz o professor com a prova, e sua vizinha, a de marcar pontos numa competição —embora alguns lexicógrafos insistam neste último caso em “pontoar”, que a história da língua já superou.

Uma acepção menos usada de pontuar (registrada pelo Houaiss, mas não pelo Aurélio) é a de “esboçar, desenhar com pontos”. Nada que ilumine o pontuar encontrado nas seguintes frases, a primeira da Folha, as outras colhidas no Google ao léu:

“Nunes Marques fez questão de pontuar sua oposição a abrir novos fronts de descriminalização do aborto.” “Eu queria pontuar que nem todos os direitos foram ampliados.” “É importante pontuar que se inicia o prazo para a apresentação da declaração de imposto de renda.”

Tendo se passado mais 20 segundos, outro brasileiro morreu de Covid —mas tampouco está nesse sentido de pontuação textual, de marcação de ritmo, a explicação do pontuar 2.0.

Também empregado em versão substantiva (“gostei das suas pontuações”), o pontuar contemporâneo lembra muito o colocar de três ou quatro décadas atrás.

Quem se lembra? O último quarto do século 20 marcou o auge do modismo desse hoje cansado verbo —e seu substantivo— no discurso acadêmico: “Eu queria fazer uma colocação, companheiro!”

Como aquele colocar, o novo pontuar exibe uma pose meio pernóstica, tem imagética espacial e quer se passar por mais preciso e lógico do que é.

De onde terá vindo? Não acho provável um desdobramento semântico do sentido tradicional de assinalar, marcar, como em “pontuou o xingamento com uma cusparada no chão”.

Se fosse assim, haveria parentesco entre ele e a pontuação de que mais um brasileiro acaba de morrer de Covid.

O pontuar da moda me parece mais um estrangeirismo semântico, acepção nova derivada de uma tradução apressada do inglês “to point (out)”, isto é, apontar, destacar, chamar atenção para algo.
Se eu estiver certo sobre isso, poderemos especular que o novo pontuar é influenciado pelo grande sucesso do substantivo ponto com o sentido de expressão de uma ideia, argumento.

Também importado do inglês, esse uso de ponto entrou em voga antes de pontuar, e tudo indica estar mais consolidado na língua do que ele.

“Meu ponto é que tanta mortandade seria intolerável se a bússola moral do país não estivesse avariada”, diz alguém.

“Você tem um bom ponto!”, responde seu interlocutor, enquanto mais um brasileiro morre de Covid.

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