Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

O Brasil contra o Brasil

A velha luta do bem contra o mal virou um modo realista de ver o mundo

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Caso alguém ande muito distraído e não tenha reparado, o Brasil está em guerra com o Brasil. Guerra aberta, cruenta, com direito a tudo o que as guerras costumam incluir, de pilhas de cadáveres a generais covardes.

Os dois lados da disputa habitam o mesmo corpo, como numa versão continental de “O Médico e o Monstro”, e até atendem pelo mesmo nome –vamos chamá-los de Brasil A e Brasil B.

O fenômeno está longe de ser inédito na história das nações, embora a recorrência não diminua sua dramaticidade. Trata-se de uma disputa pela alma do país.

Um raro ponto positivo de lutas fratricidas como esta é que qualquer criança as entende. Na verdade, não há modo melhor de dar conta delas do que o maniqueísmo dos contos de fadas.

Mulher usa máscara com imagem do presidente Jair Bolsonaro, em Brasília - Ueslei Marcelino - 15.mai/Reuters

Maniqueísmo é como chamamos toda visão de mundo que o divida de forma chapada entre bem e mal. A palavra deriva do nome de Manes ou Maniqueu, líder religioso do início do cristianismo que reduzia o universo a uma guerra entre luz e sombra –no caso, entre espírito e matéria.

Se a seita maniqueísta foi parar no museu das religiões, a palavra ficou viva em outros contextos. No mundo da contação de histórias virou nome feio, sinônimo de uma visão pueril da condição humana, marca de autores previsíveis e rasos.

No entanto, há uma razão para que histórias tradicionais trabalhem com arquétipos de bem e mal. Forças pró-vida e pró-morte se debatem mesmo dentro de indivíduos e sociedades.

O que é incomum é se distribuírem em campos opostos de forma tão organizada como ocorre hoje no país. Em contextos mais próximos da normalidade, vêm meio misturadas.

Assim como a pessoa que calunia o colega de escritório com quem disputa uma promoção é a mesma que faz trabalho voluntário na creche popular do bairro, o país que foi o último do Ocidente a abolir a escravidão é o mesmo que criou o Bolsa Família.

O maniqueísmo puro que racha o Brasil como uma machadada de madeireiro do Salles só comparece em momentos de crise aguda –psíquica, no caso de conflitos íntimos, ou política, no caso de nações.

Nessas horas, não tem como fugir. A turma A representa civilização, democracia, humanismo, arte, ciência, ecologia, prazer, tolerância, papo reto, integridade, elegância, saúde, humor e pele cheirando a sabonete de lavanda depois do banho.

A turma B defende barbárie, autoritarismo, obscurantismo, filistinismo, irracionalidade, destruição ambiental, repressão, intolerância, mentira, cara de pau, cafonice, doença, furúnculo no olho e miasmas flatulentos.

Atenção: isso não quer dizer que A só tenha santos, nem que todo mundo de B seja demônio. Os seres humanos são muitas coisas ao mesmo tempo, múltiplos e contraditórios. Quer dizer apenas que neste momento eles se dividem segundo as bandeiras acima.

Se o esquema soa simplista e infantil, culpe a realidade e não o retrato. O Brasil A e o Brasil B sempre existiram, um embolado no outro, mas separá-los nunca foi tão necessário –nem tão fácil.

Em reforço às suas posições políticas inconfundíveis, o lado B se distingue por certas marcas linguísticas (seus adeptos gostam de gritar “mito”, “Globolixo” e “comunista”, por exemplo) e visuais, como máscaras ausentes, máscaras no queixo, camisas amarelas e bandeiras do Brasil à guisa de xale.

Resta torcer para que, na hipótese de sobrar alguma coisa de pé quando a guerra terminar, nossa fase maniqueísta possa ter efeitos salutares no autoconhecimento nacional.

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