Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Essa incrível credulidade

Uma lista de grandes bobagens sobre a língua que se recusam a morrer

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A credulidade de muita gente desafia a credulidade. Basta ver quantos acreditaram que um dos representantes mais ignorantes e torpes do baixo clero do Congresso não só reunia condições de ser presidente como seria um moralizador da política.

Esses mitos mal-ajambrados são duros de desmontar. A disposição de acreditar que lobo mau é vovozinha pode ser tão grande que dentes afiados e rabo peludo se tornam, de forma perversa, a própria confirmação da vovozice.

Na língua isso provoca menos estragos, mas também cria problemas. Há uma série de lendas de falsidade gritante que, desmentidas com frequência, continuam a circular —abaixo relaciono algumas das mais tinhosas.

Como zumbis de Hollywood, são duras de matar. Pelo menos não matam ninguém, mas municiam sabichões dedicados ao esporte besta de corrigir o próximo. Resta continuar a desmenti-las. Se até Bolsonaro está finalmente derretendo, o preconceito contra “risco de vida” pode ter o mesmo destino.

boca para o especial 'o tamanho da língua'
Especial 'O tamanho da língua' - Gabriel Cabral/Folhapress

“Risco de vida está errado.” Não, não está. Essa é a expressão consagrada, parafraseável por “risco de perder a vida” ou “risco para a vida”. A locução “risco de morte”, que os crédulos afirmam ser a única correta, diz a mesma coisa e também pode ser usada, mas é uma forma emergente que se vende aos falantes com base em propaganda enganosa.

“O ditado correto é ‘Quem tem boca vaia Roma’.” Não, não é. Trata-se de um provérbio presente em diversas línguas, das quais o português é a única em que o acaso permite confundir “vai a” —do verbo ir— com “vaia”, do verbo vaiar. Ou seja, a vaia não passa de um mal-entendido. O sentido da frase é mesmo que uma pessoa despachada e capaz de fazer as perguntas certas chega longe, “vai a Roma”.

“Aluno quer dizer sem luz.” Não, não quer. É alarmante o sucesso que essa besteira faz entre pedagogos, profissionais que, lidando com educação, deveriam ser menos crédulos com a etimologia fantasiosa. A palavra aluno nasceu no latim “alumnus” (lactente), um termo derivado do verbo “alere” (nutrir). Sem luz é quem, estando no ramo de ensinar, sai repetindo essa mentira.

“O certo é esculpido em Carrara.” Não, não é. Também não é “esculpido e encarnado”. A expressão portuguesa tradicional é mesmo “cuspido e escarrado”, parente do francês “tout craché” (totalmente cuspido) e do inglês “spit and image” (cuspe e imagem), locução que hoje é mais conhecida na variante “spitting image”. Todas têm muitos séculos de vida, enfatizam a semelhança física e se baseiam numa associação entre o cuspe (a ejaculação?) e a criação.

“Crise em chinês é perigo mais oportunidade.” Não, não é. Uma tradução analítica do mandarim “weiji” poderia ser “momento crucial de perigo”. Embora signifique oportunidade quando se junta a “hui” para formar “jihui”, o ideograma “ji” não tem conotação positiva em si. A glória duvidosa de ter espalhado essa cascata pelo mundo cabe ao presidente americano John Kennedy (1917-1963), que a repetiu em incontáveis discursos.

“O certo é um peso e duas medidas.” Não, não é. “Dois pesos e duas medidas” é uma expressão de origem bíblica presente em muitas línguas (em inglês, por exemplo, se diz “two weights and two measures”). Refere-se a dois pesos de balança, um correto e um maroto, e a dois metros, um correto e um maroto —artimanhas de comerciante desonesto que rouba no fubá e no tecido, a menos que esteja vendendo para um amigo.

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