Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

O hic e o sic entram num bar

O presidente que não para de soluçar e a onomatopeia que nunca existiu

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Durante algum tempo, quando eu era pequeno e tateava um caminho no mundo da leitura –da ignorância total para a ignorância parcial, que é o máximo que podemos ambicionar–, achei que “sic” fosse a representação sarcástica de um soluço.

Me refiro à palavrinha que vem entre parênteses ou colchetes após a transcrição de um texto que contenha erro –em geral de gramática, mas também de lógica ou de fato. O recurso já foi mais comum, mas ontem mesmo estava na Folha denunciando uma crase fora do lugar.

Trata-se da transcrição de um trecho do ridículo parecer da Funarte sobre o festival de jazz da Bahia, segundo o qual, “por inspiração do canto gregoriano, a música pode ser vista como uma arte divina, onde as vozes em união se direcionam à Deus [sic]”.

O presidente Jair Bolsonaro - Adriano Machado - 12.jul/Reuters

O sic deixa claro, piscando para o leitor, que quem transcreve aquelas palavras sabe bem ter um erro ali, mas optou por mantê-lo em nome da fidelidade –quando não para zoar mesmo.

O leitor pode ficar tranquilo: faz tempo que adentrei as terras da ignorância parcial e aprendi que “sic” é um advérbio latino, antepassado de “assim”. Mas confesso que sinto saudade da tese idiota do soluço sarcástico.

A associação que eu fazia era, evidentemente, com “hic”, representação de soluço em inglês que as HQs transformaram em sucesso. Hic é uma das muitas onomatopeias anglófonas de gibis que dispensam tradução no Brasil, como burp (arroto) e screech (freada).

No caso da forma abreviada de “hiccup” – que chega ao requinte de fazer um soluço sustar a palavra no meio –, seria difícil encontrar melhor tradução gráfica do incômodo espasmo respiratório. Falta explicar o salto que eu dei do hic ao sic.

A explicação está no soluço dos bebuns. Pela lógica peculiar da ignorância imaginosa, sopão lisérgico em que eu nadava de braçada, o sic seria uma forma de insinuar, ao transcrever um absurdo, que a pessoa devia estar alcoolizada para falar uma besteira daquelas.

Foi perdendo a graça depois que descobri que ele e o hic eram perfeitos estranhos etimológicos. A antipatia cresceu quando me dei conta da seletividade com que agia, tornando-se muitas vezes um reles dedo-duro a serviço do preconceito.

Por exemplo: o sic gosta de apontar “erros de português” na transcrição, pela imprensa, de conversas de traficantes vazadas pela polícia. Já foi visto agraciando um simples “tá legal”. Mas se omite quando os mesmos “erros” –em geral traços da fala informal brasileira– aparecem na boca de políticos, empresários, artistas.

Sabe ser sonso, o sic. Às vezes é útil, mas fui ficando ressabiado com ele. Nada me preparou para vê-lo se fundir de novo com o hic de forma bombástica –o soluço errado, o erro que soluça–, por obra de Bolsonaro.

O presidente da República é, entre todos os ocupantes do cargo, o que mais faz por merecer sics em série quando abre a boca. Ganha longe de qualquer antecessor, e não se pode dizer que a concorrência seja moleza.

É –como convém direitinho ao seu estilo de fazer política –uma notável máquina de solecismos, erros lógicos, miséria vocabular, palavrões, grunhidos, hesitações e outras barbaridades dignas de sic.

Bolsonaro [sic], presidente [sic] da República [sic] é agora também o homem que não para [hic] de soluçar de forma [hic] misteriosa e [hic] aflitiva.

O poeta T.S. Eliot previu um fim de mundo original em que, em vez de uma explosão, ouve-se um gemido. E se fosse um soluço?

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